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domingo, 23 de dezembro de 2018

O MUSE, O ALTO INGEGNO, OR M'AIUTATE III


AS MUSAS DA MPB DO PASSADO - III
Wando (Bol)
O artigo anterior partiu do ano de 1954, com Tereza da Praia, de Tom Jobim e Billy Blanco, e chegou a Madalena, de 1970, autoria de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza. Vamos, pois, seguir daí em frente, navegar nas ondas sinuosas das paixões por musas inspiradoras. No início de década de 70, pico da ditadura, compositores voltaram-se mais às entrelinhas para falar do cotidiano, em mistura temperada com amor e medo. As paixões eram, quando muito, inominadas e singelas, como Moça, de Wando (1975), feita para uma súbita caída amorosa do romântico, um amor que conheceu em Belém e viu rapidamente frustrado: “Moça / me espere amanhã / levo o meu coração / pronto pra entregar”. Voltou de Belém sozinho e a tal moça ficou com outro amor. O nome dela ficou oculto talvez por motivos de, digamos, segurança pessoal.

Caymmi, também em 1975, compôs Modinha para Gabriela, do papel-título da novela: “Eu nasci assim / eu cresci assim / (...) vou ser sempre assim / Gabriela”. A música também é tema de um filme de Bruno Barreto com Sônia Braga no papel principal. O nome Gabriela chegou a ser usado popularmente com referência à mulher teimosa, que não dá o braço a torcer. Ainda no mesmo ano, grande sucesso foi Severina Xique-Xique, de Genival Lacerda e João Gonçalves. Uma letra divertida com anedótico trocadilho: “Quem não conhece / Severina Xique-Xique / que montou uma butique / pra vida dela melhorar”. Mulher que um tal de Pedro Caroço ficou a ‘azarar’, daí o comentário do estribilho - “ele tá de olho / é na butique dela...”
Milton Nascimento e Fernando Brant em 1978 arrasaram com Maria, Maria – nada a ver com o anêmico sambinha homônimo gravado em 2008 pelo grupo de pagodeiros Molejo. A exaltação à Maria dos mineiros é uma joia preciosa de lirismo em tempos de luta pela liberdade de se expressar, de criar, de viver: “Maria, Maria / é um dom, uma certa magia / (...) Mas é preciso ter força / é preciso ter raça / é preciso ter gana, sempre”. Maria, o nome feminino mais comum do país, nessa letra, segundo Tatyana Casarino, pode ser vista como um brinde ao ‘povo brasileiro’, que mesmo com tantos motivos para chorar continuava sorrindo, carregando sob o sol o pesado fardo do dia após dia.

Vera Fischer em 'Brilhante'
As aparentes entressafras de musas da MPB deram apenas alguns títulos que não estão à altura das melhores poesias. Dois anos depois de Maria, Maria, em 1980, veio a obra-prima Luiza, a pedido da Globo para a telenovela Brilhante, estrelada por Vera Fischer. Some-se o nome do autor, Tom Jobim, à qualidade artística e ao potencial de difusão da TV para se fazer um sucesso enorme. Com simplicidade e beleza, a letra é digna de figurar no rol das grandes da MPB, especialmente levando-se em conta quem as assina com sotaque do Vinicius: “Vem cá, Luiza / me dá tua mão / (...) me dá tua boca / e a rosa louca, vem...”, canção de pinceladas impressionistas que mereceu várias regravações.
Foi preciso chegar a 1983 para Chico e Edu Lobo criarem a deslumbrante Beatriz, música para o evento de ‘arte total’ O Grande Circo Místico. Inspirado na obra de 45 anos antes de Jorge de Lima, O Grande Circo foi um bailado – ou melhor, um caldeirão artístico com dança, ópera, poesia e circo – que estreou no Teatro Guaíra, de Curitiba. A poesia original de Lima era uma revisitação a um fato verdadeiro ocorrido na Áustria do século 19: a paixão entre um homem de fino trato por uma linda acrobata do Grande Circo Knieps, que se apresentava pelos quatro cantos. Beatriz, com grandes exigências vocais, é uma música que poucos podem cantar. Entre outros intérpretes do Circo, o contemplado foi Milton Nascimento, com sua voz potente nos graves e agudos, que se sobressaiu graças à sua versatilidade e expressão como cantor. O sucesso foi tamanho que O Circo chegou a duzentas apresentações, sendo que uma delas lotou o Maracanãzinho. “Olha, será que ela é moça / será que ela é triste / (...) e se eu pudesse entrar na sua vida”.
Em 1984 e 1985, apesar de belíssimas músicas, raramente se chegou às pérolas do passado com que as musas eram agraciadas. Já não agradavam aos ouvidos do povo os cantos e encantos das musas eternas. Bete Balanço, filme estrelado por Débora Bloch, trazia música-título de autoria de Cazuza e Frejat - com um pé nos Rolling Stones - e talvez uma exceção: “Pode seguir a tua estrela / o teu brinquedo de star / fantasiando um segredo / no ponto aonde quer chegar”.  (Deixo minhas escusas se me esqueci de uma ou várias poesias). Uma vez escasseando os grandes poetas e o lirismo poético, às letras dirigidas mais para coisas cotidianas sem maiores pretensões faltava a riqueza de uma ode, um brinde de espuma do mar à mulher desejada. Talvez houvéssemos chegado a um ponto em que as musas, salvo raras exceções, já não tinham a importância do passado.
Anna Julia (Los Hermanos), de 1999 – regravada pelo George Harrison! -, entre algumas outras, pode até ser simpática, mas não alça à altura do que fora escrito nos períodos mais férteis da ebulição cultural e romântica dos compositores brasileiros. A queda acentuada do nível dos artistas colaborou para que se abrisse pouco espaço para coisa melhor, enquanto os autores medalhões do passado se recolhiam às suas bissextas criações. Veio um funk que não é, um pagode sem samba e um sertanejo que é urbano - e que quase nada puderam contribuir para a causa.

 [Título: ‘Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: Divina Comédia. Inferno, Canto II]

domingo, 16 de dezembro de 2018

'O MUSE, O ALTO INGEGNO, OR M'AIUTATE'


AS MUSAS DA MPB DO PASSADO - II

Billy Blanco
No artigo anterior, abordamos o repertório da MPB dedicado às musas, às mulheres inspiradoras: casos platônicos, flertes, amores ‘a prima vista’, namoradas, esposas ou amantes. Passeamos desde os idos de 1901, com Yara (Rasga Coração) até Sebastiana, de 1952. Dos amores cantados já vistos, vamos agora para 1954 com Tereza da Praia, do Tom Jobim e o paraense Billy Blanco, arquiteto de formação, autor também da divertida Piston de Gafieira.
Praia do Leblon
Tereza da Praia gerou uma pequena dúvida entre os fãs, pois a mulher de Jobim também se chamava Tereza e a letra, está claro, não seria para ela (quem sabe se a dedicada era alguma ‘garota do Leblon’?) Divertida é uma brincadeira sobre uma rixa entre Dick Farney e Lúcio Alves: “Lúcio, arranjei novo amor no Leblon / que corpo bonito / que pele morena”, versos que continuaram com declarações de fantasia entre Dick e Alves “ - é a minha Teresa da Praia / - se ele é tua é minha também”, para juntos concluírem que “Teresa da praia / não é de ninguém”.
Klecius Caldas (IMMuB)
E veio “Maria Escandalosa”, de 1955, marcha carnavalesca de Klecius Caldas e Armando Cavalcânti, mulher que seria hoje uma ‘piriguete’: “Maria Escandalosa / desde criança / sempre deu alteração / na escola / não dava bola / só aprendia / o que não era lição”, para concluir de forma ousada, para a época – “é muito prosa / é mentirosa / mas é gostosa”. As marchinhas carnavalescas, dado o espírito voluptuoso da festa pagã, eram mais apimentadas do que as músicas do resto do ano.
Cauby, a grande estrela de 'Conceição'
Há um samba-canção que marcou época na MPB e foi o maior sucesso de 1956: Conceição, de Jair Amorim e Dunga, ‘estouro’ nas paradas e repertório de 9 entre 10 estrelas e sucesso imortal de Cauby Peixoto. Trata-se da história de uma mulher que não se conformava em viver na pobreza: “Conceição / (...) vivia no morro a sonhar / com coisas que o morro não tem”. Pois não é que a musa subiu de vida, mas a ascensão social terminou em um tombo infeliz para ela? “ E agora daria um milhão / para ser outra vez Conceição”. No mesmo ano (na verdade, composta em 1953), também causou frisson a Iracema, de Adoniran Barbosa, uma dor de cotovelo profunda: “...Iracema / meu grande amor foi embora / chorei, eu chorei de dor porque / Iracema / meu grande amor foi você”.
Jobim e Dindi
Saltemos para 1959, com Dindi, de Tom Jobim e Aluízio de Oliveira, um samba-canção que rodou o mundo, gravado mais de uma centena de vezes (incluindo Ella Fitzgerald e Sinatra) e que teve seu modesto début com Sylvia Telles. Tom inspirou-se no riacho de uma fazenda - que tem esse nome, ‘Dirindi’, ou Dindi - atrás de seu sítio próximo a Petrópolis (RJ). Sabe-se lá se imaginou um idílio com misteriosa ninfa dos bosques petropolitanos. “Ah, Dindi / se soubesse do bem que eu te quero / o mundo seria, Dindi, tudo, Dindi, lindo, Dindi”.
O jovem Carlos Lyra
O anonimato de Maria Ninguém, samba de Carlos Lyra (também de 59), cativa. (Ele, também o autor da mais bela declaração de amor da bossa-nova, Minha Namorada). É um canto à mulher misteriosa, difícil de conquistar: “Maria Ninguém / é um dom que muito homem não tem / haja visto quanta gente / que chama Maria / e Maria não vem”. Musas que ninguém sabe quem foram, como Kalú, Tereza da Praia, Dindi e Maria Ninguém são moldura para qualquer mulher com que se possa sonhar.
Passados a era JK, a renúncia de Jânio e o famoso show que tornou a bossa-nova um ritmo universal via concerto no Carnegie Hall (a nata do jazz presente), veio o golpe de 1964. As letras de Chico Buarque tornaram-se mais intimistas e ricas em poesia. Um bom exemplo é A Rita (1966), ainda com o toque mais conservador, mas de uma inteligência extraordinária: “A Rita levou meu sorriso / no sorriso dela / meu assunto”. E prossegue, de jeito literato: “...levou seu retrato, seu trapo, seu prato / (...) uma imagem de São Francisco / e um bom disco de Noel”.  Levaram tudo do poeta, e há quem diga que Chico se referia à ditadura: Rita, suas coisas, a imagem de São Francisco e o bolachão do Noel Rosa.


No mesmo ano, o artista plástico Rubens Guerchman (falecido em 2008) pintou sobre um espelho A Bela Lindonéia, ou Gioconda do Subúrbio. Rosto deformado, a boca meio que repuxada e o olho esquerdo arroxeado, cara de quem teria sido espancada. Em 1968, ‘o ano que não terminou’ - com o aperto geral do nó do cinquentenário AI-5 -, surge outra Lindonéia, esta de Caetano, um bom exemplo do duplo sentido, das imagens ocultas a que passaram a ser obrigados os artistas, sob os trancos dos coturnos e à tesoura da censura: “Despedaçados  / atropelados / cachorros mortos nas ruas / policiais vigiando / (...) Lindonéia desaparecida / a solidão vai me matar de dor”. Eram tempos difíceis os das Lindonéias de Guerchman e Caetano! 
Madalena, de 1970, é um ritmo balançado de Ivan Lins, então egresso do movimento universitário de música. A letra muito bem casada com a música é de Ronaldo Monteiro de Souza, e o título, fictício, foi inventado por precaução - a musa real, Vera Regina, era par de Ronaldo, mas o nome ‘não dava samba’. Elis Regina resolve gravá-la e a emplaca definitivamente em seu repertório, com enorme sucesso. Quem não se lembra da poesia, mais uma dor de cotovelo escancarada: “Ê Madalena / o meu peito percebeu / que o mar é uma gota / comparado ao pranto meu”. A fase de universitários como Ivan Lins foi profícua e enriquecedora. A MPB ganhou com jovens cultos e estudados. (Cont.)
[ Título: ‘Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: Divina Comédia. Inferno, Canto II]

domingo, 9 de dezembro de 2018

‘O MUSE, O ALTO INGEGNO, OR M’AIUTATE’1

AS MUSAS DA MPB DO PASSADO - I
Começo esclarecendo que costumo chamar de MPB exatamente o que a sigla quer dizer por extenso (música popular brasileira), não apenas da bossa-nova em diante, como muitos. Neste artigo, o ano de cada música comentada da MPB será o do primeiro registro, primeira gravação ou da primeira partitura.
Catulo
É difícil precisar quando a nossa música popular começou a dar nomes às paixões femininas, suas musas, mas neste texto optei pela ordem cronológica, e encontrando tantos nomes fui obrigado a fazer escolhas. Há poucos registros do início do século 20, porém um marco talvez seja Yara, subtítulo Rasga o Coração, chótis (schottische) de Anacleto de Medeiros e do grande poeta popular Catulo da Paixão Cearense: “Se tu queres ver a imensidão do céu e mar / (...) rasga o coração, vem te debruçar”.
Ary Barroso
Saltemos para Maria, de 1933, sucesso de Ary Barroso e Luís Peixoto. Música de uma peça teatral, foi um tributo à atriz portuguesa Maria Sampaio, a estrela: “Maria, o teu nome principia / na palma da minha mão...” De então para 1935, Lalá, marcha de João de Barro e Alberto Ribeiro, cheia de graça. Trata-se de uma deliciosa aliteração com vogais sobre o nome-título, terminando com a mulher da escolha do cantor (não a do título), entre cinco moçoilas: “Lalá, Lelé, Lili, Loló, Lulu / amei Lalá, mas foi Lelé que me deixou /jururu”.
Vênus de Milo
1937 foi o ano da Rosa. A de Pixinguinha, cuja melodia estava guardada há 20 anos e a letra que veio depois soa inspirada na perfeição de Vênus, deusa da beleza e do amor na mitologia grega, renascida carioca: “Tu és divina e graciosa / estátua majestosa do amor / por Deus esculturada...”, sem poupar, como se vê, exageros poéticos.
Os Anjos do Inferno
Em 1941, Antônio Almeida e Constantino Silva brindaram nosso cancioneiro com o samba carnavalesco Helena, Helena, que fez sucesso na voz do grupo Os Anjos do Inferno - “passei o resto da noite a chamar / Helena, Helena, vem me consolar”. O ano seguinte, 1942, consagrou o imortal modelo - machista, dirão hoje -, de companheira de todas as horas. “Ai meu Deus / que Saudades da Amélia, aquilo sim é que era mulher / Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era mulher de verdade” joia de Ataulfo Alves e do versátil Mário Lago, homenagem carinhosa à empregada da cantora  Aracy de Almeida (título dicionarizado pelo Aurélio referindo-se à mulher submissa!).
Fim da II Guerra no Times Square
1945, do fim da II Grande Guerra, desencadeou um boom mundial de paixões e bebês, as primeiras tão desejadas e os segundos tão evitados durante o conflito! O ano produziu entre nós inúmeras oferendas amorosas, entre elas duas obras-primas. Uma é de Caymmi: “Dora, rainha do frevo e do Maracatu / Dora, rainha cafusa de um Maracatu”. Dora teve de competir com Isaura, do mesmo ano, da lavra de Herivelto Martins e Roberto Roberti, cantando o cruel dilema entre ir trabalhar ou ficar com a amada: “Se eu cair em teus braços / não há despertador que me faça acordar...” O mesmo ano ainda nos brindou com Maria Betânia, do pernambucano Capiba, curiosamente homem do frevo e não do samba, canção que balançou as rádios no vozeirão de Nelson Gonçalves: “Tu és para mim / a senhora de engenho”, talvez uma forma de o autor rebaixar-se galantemente ao papel de escravo de sua musa, com uma melodia bordada com imensa tristeza.   
Caymmi
O genial Caymmi reaparece em 1947 com sua Marina, de poesia tão linda, um samba urbano mais à maneira do Rio pré-bossa-nova do que das praias baianas: “Marina, morena Marina / você se pintou / (...) Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu / (...) desculpe, Marina Morena, mas eu tô de mal...”. O aparente dissabor ao ver sua amada ‘produzida’ é ao mesmo tempo um elogio à beleza pura, a que pode falar com suas próprias cores, seu jeito meigo, seus traços bem desenhados. Em conversa com o poeta Paulo Mendes Campos, o baiano disse que se inspirou em uma birra de seu então filho pequeno, Dori, que lhe disse ‘tô de mal de você’.
1959: Niemeyer mostra Brasília a Sartre (de óculos)
Em 1949, Chiquita Bacana, de João de Barro e Alberto Ribeiro, fazia gracejos com... o existencialismo, dez anos antes de Jean-Paul Sartre conhecer o Brasil, em visita a Brasília com Niemeyer. Na paradisíaca Martinica do Caribe francês, com a sensual casca de banana que vestia Chiquita, a música estourou nas paradas com a ‘rainha do rádio’, Emilinha Borba. Aproveitando-se do momento parisiense que seduzia as hostes boêmias e intelectuais do Rio, os autores apelaram para a sensualidade feminina, fazendo uma espécie de ‘chiclete com banana’ com a filosofia da moda: “Não usa vestido, não usa calção / inverno pra ela é pleno verão / Existencialista (com toda razão!) / só faz o que manda / o seu coração”.
Por sugestão da ‘Estrela Dalva’ de Oliveira, em 1952 Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira compuseram um baião romântico intitulado Kalu, codinome de uma paixão oculta (não se sabe de qual dos dois): “Kalu, Kalu / tira o verde desses olhos de cima d’eu / (...) você tá ‘mangando’ di eu” (mangar, verbo surgido no séc. 18: caçoar). Era o jeito dengoso com que só o velho Lua sabia galantear. O ano seguinte também foi do Nordeste, com Sebastiana, de Jackson do Pandeiro (autor de Chiclete com Banana), mestre do forró e do xaxado: “Convidei a comadre Sebastiana / pra dançar e ‘xaxar’ na Paraíba / ela veio com uma dança diferente / (...) e gritava A, E, I, O, U, Y (cantado ‘ipsilone’).
Descobrir a beleza desse repertório dedicado à mulher - seja um caso platônico, flerte, amor à primeira vista, namorada, esposa ou amante - é fácil, basta ouvir. Difícil é escolher, entre tantas, e no fértil período que abordei, um meio século! (Cont.)

[1 ‘Ó musas, ó altos gênios, agora me ajudem’ – Dante: A Divina Comédia. Inferno, Canto II] 

domingo, 2 de dezembro de 2018

ESCOLA SEM SENTIDO


A EMC, Educação Moral e Cívica (versão tupiniquim do Enseignement Civique francês), foi uma disciplina criada na ditadura Vargas (1940) para ser aplicada em todas as séries do ensino escolar. Mais leve e coerente, no intuito de seduzir os alunos, o governo Goulart, em 1962, havia criado a OSPB (Organização Social e Política Brasileira), abordando aspectos diversos de nossa sociedade, com um pé no nacionalismo caudilhista. Em 1969 – ainda na ressaca de 1968, ‘o ano que não terminou’, Costa e Silva fez uma reedição por decreto, com força de lei, para controlar as discussões e questionamentos que contagiavam a juventude. Em 1993, por iniciativa de Itamar Franco - e quae sera tamen -, a disciplina foi revogada, “pois em um regime democrático não mais caberia tal camisa de força”, disse. A matéria no fundo colhia o contrário do pretendido: a antipatia, pois que feita para coagir, ‘fazer a cabeça’ e aquietar os estudantes.

Lembro-me da fase até 1977, tanto quanto não me esqueço do ódio que os alunos incubavam ao assistir a uma aula chata, forçada e mentirosa. Copiaram toscamente e na aparência modelos estrangeiros, como o American Government e o Constitution and Government (ambos dos EUA), e o Enseignement Moral et Civique francês.

EPB, em uma das inúmeras edições e inúmeros autores
O problema maior era a mesmice, a chatice e o reacionarismo da disciplina, sentimentos divididos até pelos professores, que tentavam tornar as aulas mais palatáveis, mas com muito pouco sucesso. Ao voltar dos EUA, fui revalidar meu diploma em uma universidade pública brasileira. Apesar do nível de excelência da escola americana, disseram-me que faltava um semestre de Problemas Brasileiros.

Por Debret
Sorte minha: o professor encarregado de ministrar a disciplina era um grande músico, me reconheceu do passado e pediu que eu o encontrasse depois da aula. Assim feito, ele me disse, em voz baixa, que achava um absurdo eu fazer aquela matéria. Ele fora designado para a aula pela chefia, mas a detestava, fazia-o contra a vontade. Pediu-me um trabalho sobre o tema para o final do semestre e ficaria tudo bem. Posso escrever sobre esta disciplina, brinquei: é mais um problema brasileiro! Tapinha nas costas, fui para casa e retornei apenas para entregar um trabalho que, se não me engano, versava sobre a história da cruel exploração dos povos negros no país. Um problema brasileiro!

Movimento "espontâneo" pela volta da EMC
Ideias mirabolantes de se reinstaurar algo como Moral e Cívica – camuflada ou não - no ensino escolar só não é repudiada (ainda) pelos alunos porque eles não a conhecem. Ela na verdade estaria inserida em todas as disciplinas, e haveria um viés ideológico e até religioso – a depender da matéria. Enfim, seria uma troca de escola sem partido por uma escola ‘da nossa ideologia’.

Mas há quem pretenda ir além com esse educar sem partidos, o que é uma quimera. E sem ideologia, o que é pior ainda. A ideologia está presente até no contexto de um projeto que envolve bioquímica e fundição de materiais. Mais ainda: por acaso existe história sem ideologia? Nunca, ainda mais porque a história é escrita sempre pelos poderosos ou seus bedéis, sejam fatos e dados reais ou coloridos ao bel-prazer de quem a conta. No passado tivemos o positivismo de Comte e Mill, despejado em todas as salas de aulas. Lembro-me disso na faculdade, no Rio, na época da repressão Médici (1971/72)! A detestada professora veio com a ‘ruptura epistemológica’ de Bachelar, mas aquilo nada mais era do que o afastar do conhecimento adquirido, do que já se sabia – o qual se deveria combater. No Brasil, aplicavam-na com o intuito de tolher passado e ideologias, e não da forma que Bachelar buscava empregar como método.

(Emais Rondônia)
Falar de Revolução Francesa sem falar em ideologia é, sim, um ato ideológico, envernizando a história e imobilizando-a. Da Proclamação da República, encharcada de positivismo, nem fale. E mesmo do descobrimento do Brasil, igualmente. Só para falar de história ou geografia, não há um momento sequer em que ideologias não estejam presentes, seja pelo lado de quem escreveu, o vencedor, ou de quem interpreta o que está escrito. Contar a Proclamação da República sem menciona-la como golpe um de estado de Deodoro? E Floriano Peixoto, traíra que ‘substituiu’ o Marechal por golpe, um rígido ditador? E a longa escuridão de 1964? Nada disso está na ‘história oficial’ como realmente aconteceu.

Partidarismos e eventuais excessos são assuntos para ficarem a cargo do diretor de escola, como convém a qualquer organização, além de assuntos pornográficos, racistas ou de agressões físicas. Disse George Orwell, em meados do século 20, que a história é contada e escrita pelos vencedores. Claro, derrotados não têm voz. Em seu histórico livro ‘1984’, Orwell preconizava: “O que pode ocorrer em uma sociedade completamente vigiada? E se essa vigilância se transforma em mecanismo para controlar as pessoas?” Viro a página para outro capítulo e pergunto eu: que tal as ciências humanas sem o perpasse ideológico? Mais frias do que voz de androide em anúncios 3D computadorizados! E para achar propaganda partidária em conteúdo ideológico basta um olhar de soslaio do inquisidor. Ambiciona impor uma ideologia ‘limpa e casta’ - a própria.

Mais agressivo seria o policialesco ato de o estudante filmar o professor, como se fosse um bandido procurado. Com tantas rusgas entre alunos e mestres, nas quais os últimos são invariavelmente os mais atingidos com agressões de toda ordem, dá para imaginar jovens vingativos e habilidosos montando vídeos para denunciar professores de que não gostam. Dedurar gravando um mestre é uma ideia perversa, uma verdadeira bomba social. Reflitamos sobre o passado, ele é a história que nos dará o rumo a ser seguido no combate a essas aberrações. Antes que tarde.


domingo, 25 de novembro de 2018

A DOR


"Notícia" de divulgação da peça

“Pra mim / basta um dia / não mais que um dia (...) / Só um / belo dia / pois se jura, se esconjura, se ama e tortura / se tritura, se atura e se cura a dor / na orgia / da luz do dia / é só / o que eu queria / um dia pra aplacar / minha agonia”. Lembro-me das mais de  centena de vezes que ouvi a linda interpretação da Bibi Ferreira para esta obra do Chico, na peça Gota D’Água (fui músico da estreia e temporada carioca). A dor de Bibi/Joana/Medeia era por Jasão tê-la abandonado com os dois filhos para unir-se a Alma, filha do poderoso Creonte, o rei do pedaço, ambientando a tragédia de Eurípides (480-406 a.C.) em alguma favela de um morro do Rio. Após muitas ideias, todas loucas, claro, atormentada e alimentada apenas por uma dor imensa, Joana/Medeia resolve matar os dois filhos e suicidar-se, vingança contra o traidor Jasão. A dor imensa chegaria ao fim com a consumação do gesto.
Belchior, ainda jovem, foi do seu Ceará natal para o Rio, tentando a vida com o violão. Um dia compôs uma das obras mais populares de Elis Regina, Como Nossos Pais (1976): ”Por isso cuidado, meu bem / há perigo na esquina / eles venceram / e o sinal está fechado para nós / que somos jovens / (...) Minha dor é perceber / que apesar de termos feito / tudo o que fizemos / ainda somos os mesmos e vivemos / como nossos pais”. A dor de Belchior era aceitar que “eles” nos derrotaram, que (ainda) vivíamos como antes, entre perigo e medo. E que, embora tenhamos feito de tudo, ainda permanecemos os mesmos e nada mudamos. Era a dor do inconformista, do jovem que, como milhões de outros, queria transformar o país e o mundo em um lugar melhor, e por tudo isso sentiu-se derrotado. Ele alerta para o perigo nas esquinas, mas ao final se conforma: “eles venceram”. A censura do regime militar foi condescendente com as muito sutis cores da poesia desta música, mas em troca foi implacável tesourando aqui e ali trechos de diversas outras faixas do disco, a título infantil de compensação. 
(Crédito: Filosofa's world)
O amor, sentimento maior e puro na essência, leva a sentir de outra forma uma dor diferente, tão profunda que pode levar a matar ou morrer (haja vista a Medeia e os assassinos dos telejornais diários!). Já a rica poesia de Paul Simon e Art Garfunkel assim resumiu o papel do poeta frente ao sofrimento da amada, em Bridge over Troubled Water: “E quando a dor estiver por todo canto, / como uma ponte sobre águas revoltas / eu vou me deitar”. É o gesto que lembra o clássico ‘estender o paletó’ sobre a poça para a mulher cortejada passar, só que agora transposto para um ângulo mais amplo, cinematográfico e mais abrangente do poético afago, que é oferecido à guisa de suporte para a amada nas horas de dor. Uma ponte que vai se estender para que ela atravesse o rio de águas furiosas, perigo que volta e meia aparece no caminho da vida.  A dor da paixão faz de tudo contra a tristeza da amada nos momentos mais depressivos.
Mas o que seria a dor de que tanto falamos, e que volta e meia sentimos? O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), em seu Alquimia da Dor, diz “Um te ilumina com seu ardor / o outro encontra em ti teu luto, natureza! / aquele que diz a um ‘sepultura!’ / diz a outro ‘vida e esplendor” (T. do A.). Mas que sentimento é esse, tão volúvel, tão confuso? Para uns a morbidez, aos outros um paraíso? E por que uns sentem, outros não? Chico mostra a resiliência da mulher que sofre a qualquer tentativa de salvá-la: “Carolina / nos teus olhos fundos / guarda tanta dor / a dor de todo esse mundo / (...) Eu bem que mostrei sorrindo / pela janela, ó que lindo / mas Carolina não viu”. (Carolina, graças à Globo, foi composta às pressas como moeda de troca pelo rompimento por parte do Chico do contrato de um programa especial assinado com a emissora, que exigiu em contrapartida uma música para o II Festival Internacional da Canção. Do acerto surgiu esta pérola, uma das mais lindas do bardo carioca. (Fonte: Severiano, Jairo e de Mello, Zuza Homem. A Canção no Tempo. SP: ED 34, 4ª ed. 2002)
(Ilust. Legal Moments)
A dor imposta pela traição a Joana/Medeia, a dor de Belchior ao ver que perdemos a luta, a dor apaixonada do homem que se deita como uma ponte para a travessia de sua amada nos momentos difíceis, a dor ambígua em Baudelaire, a dor física do enfermo ou do acidentado - afinal, o que é essa dor de que todos falam? Que sentimento é esse, tão inexplicável? Houaiss tenta organizá-lo em acepções, tais como ‘sensação desagradável’, ‘mágoa por desgostos’, ‘compaixão’, ‘sofrimento físico ou moral’... Mas dá para explicar o significado da palavra a quem hipoteticamente nunca tenha sofrido? Primeiro, definir ódio, amor, medo ou dor é missão sem norte e sem fim. Depois, é melhor viver a dor, por um segundo que seja, do que tornar esses sentimentos objetos de estudos, definições e axiomas, na busca vã de explicar o inexplicável.
Pau de arara (Superinteressante)
Qual o sentido da dor eterna, que pode levar à morte, como em Gota D’Água/Medeia? Da dor que mereceu do amado uma ponte? Da dor que poderia sucumbir à beleza, mas Carolina não quis ver... A dor pode durar um átimo ou uma vida inteira, ser sentida por um bebê na vacinação e por outro apenas estranhada, ou por uns mais e outros menos ao encarar a morte de um ente querido. Fale-me de suportar a dor, fazendo-o em silêncio durante uma sessão de tortura, como sofreram muitos. Que seja algo tão etéreo quanto descreveu Fernando Pessoa em Vaga, no Azul Amplo Solta: “Na minha amarga ansiedade / mais alto do que a nuvem mora / está para além da saudade / (...) Não sei o que é nem consinto / à alma que o saiba bem / visto da dor com que minto / dor que a minha alma tem”.

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

O MEDO



Talvez a representação plástica mais impactante sobre o medo seja a obra-prima O Grito (1893), do norueguês Edvard Munch. Seduzido pelas portas maravilhosas que o simbolismo lhe abria de maneira bem pessoal, Munch também foi influenciado pelos expressionistas alemães. Mas que mistério inominado teme a figura retratada por Munch? 
Para mim o quadro remete a figura concreta, uma fotografia: a da menina Kim Phuc, sem roupas e desesperada, tentando fugir do ataque de bombas Napalm na guerra do Vietnã. Em O Grito, a boca escancarada, as mãos espalmadas sobre faces e orelhas, um cenário de linhas sinuosas como fossem as ondas sonoras do berro incontido. Para maior impacto, Munch pintou nuvens como representação de sangue: dor.
Quem tem Medo de Virginia Woolf? (1962) é o título de uma peça do grande teatrólogo americano Edward Albee. Aborda os conflitos de um homem e uma mulher de meia-idade com seus convidados, um casal de jovens. O título é uma blague com o nome da escritora Virginia Woolf (1882-1941) sobre Quem tem Medo do Lobo Mau (‘Who’s afraid of the Big Bad Wolf?), de ‘Os três Porquinhos’, desenho animado infantil de Walt Disney.  
Clarice Lispector passeia com Freud e Kierkegaard (“a angústia é a vertigem de liberdade”). Especialmente no filósofo dinamarquês, trava-se o embate entre medo e liberdade, duas faces opostas ligadas à raiz de uma mesma origem. Se Freud separou medo, susto e angústia, cada um com seus signos, Clarice os uniu, tornando essa trindade coesa e apavorante, praticamente um sentimento uno em sua obra, na qual passeiam a ‘condenação à liberdade’ de Sartre e Kafka, em seu livre mas amargo mundo surreal interior.
Milton Nascimento, na brilhante Caçador de Mim (1981, nos estertores da ditadura), falou sobre ignorar o medo: “Nada a temer senão o correr da luta / nada a fazer senão esquecer o medo, medo / Abrir o peito à força numa procura / fugir às armadilhas da mata escura...” É um desafio de peito aberto ao medo, o enfrentar a luta como inevitável. Mas Jobim, como sempre, prefere seu lado dócil e enamorado: “...teus olhos morenos / me metem mais medo / que um raio de sol”.
Jackson do Pandeiro curte à moda bem faceira a simplicidade e a pureza de seu medo, o de perder um amor: “A ema gemeu (...) / será que é o nosso amor, ó morena / que vai se acabar? / Você bem sabe que a ema quando canta traz no meio de seu canto um bocado de azar / Eu tenho medo, morena / eu tenho medo / (...) desse amor se acabar”.
O medo é como venda nos olhos e abismo na estrada de um povo. Ele não pensa, só teme as consequências, meio caminho da espiral da alucinação. Já o líder que mostra destemor é um chefe a ser respeitado. Bom exemplo foi um certo discurso meio xoxo de JK a um público apático. Meu pai, secretário de imprensa da Presidência e responsável por muitos textos palacianos, achou por bem arriscar num pedaço de papel colocado no bolso do paletó de JK uma frase de impacto, de inspiração bíblica e volta e meia lembrada: “Deus poupou-me o sentimento do medo!” JK bradou-a com tamanha verve e convicção que o público saiu da letargia e irrompeu em sorrisos e aplausos solidários. Havia medo: houve ameaça de golpe logo na posse, malograda com a presença do Mal. Lott, as fracassadas revoltas militares de Aragarças e Jacareanga. Havia razão de sobra para o medo, que só viria a se impor como todo-poderoso sistema após 1964, alguns anos depois.
Restos de armênios
Existe medo maior do que aquele sentido nos corredores da morte? O que vinha do odor  dos campos de Auschwitz, Treblinka e Sobibór? Dos armênios durante o genocídio pelos otomanos de 1,5 milhão de seus irmãos de sangue? Ora, no Vietnã oficiais americanos faziam vista grossa para injeções de morfina (e mesmo heroína) nos soldados, o ‘front’ se transformava em um espetáculo indolor, pleno de cores e delírios. Já os inimigos foram mortos a seco, a dor perfurando as tripas e o fundo d’alma.
O Brasil sempre foi pródigo em períodos de medo: os massacres da colonização, a escravatura, as chibatadas e punições sem lei, as matanças de índios, as crueldades contra os inconfidentes, o esmagar com sangue nos olhos diversas revoltas populares. A mais longo termo, as ditaduras, como as de Floriano, Getúlio e a de 1964. O medo era real até nos sonhos, como aquele retratado por Chico: “Acorda, amor / eu tive um pesadelo agora / sonhei que tinha gente lá fora / (...) Era a ‘dura’, numa muito escura viatura...”. O medo do número crescente de prisões, torturas, medo de sair na rua, a angústia de estar sem saber próximo do que se chamaria ‘síndrome do pânico’, assídua nos divãs de psicanalistas e consultórios de psiquiatras de hoje, transtorno cada vez mais comum entre os cidadãos: o fim da estrada é simplesmente o terrível medo de ter medo (a literatura sobre a síndrome em todos os idiomas é vasta).
Impor o medo é estratégia tão antiga quanto o próprio homem. Resume Macchiavelli, em O Príncipe (XIX.12): “O príncipe que quer conservar seu domínio às vezes é instado a praticar o mal”. Seja pela força bruta, aliada a outras ferramentas de molestamento físico e mental, seja pelo cerceamento do cidadão, cada vez mais podado em sua opinião e arbítrio. Imagem impiedosa é ficcionalmente estampada em Alphaville (1965, filme de Jean-Luc Godard), um lugar onde sentimento e amor eram vetados. Há também 1984, de George Orwell, texto de 1949 que espelha o doloroso perigo do império nazista, então já derrocado.
Disse Nelson Mandela: “Aprendi que coragem não é ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. O homem de bravura não é o que não sente medo, mas o que o conquista”.