LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sábado, 25 de fevereiro de 2017

MÚSICO: NACIONALIDADE, COSMOPOLITA

A pátria do músico é onde ele está. Começo por duas grandes orquestras americanas e os que para lá foram, ensinando gerações e moldando grupos. Na Filadélfia, onde há também o famoso Curtis Institute, ensinaram os que fizeram a base da interpretação, principalmente dos sopros, o mito Marcel Tabuteau, oboísta francês, e o fagotista Sol Schoenbach, americano de origem alemã, entre outros.

Na Sinfônica de Boston, e professores da New England, Armando Ghitalla, Gaston Dufresne e Roger Voisin. (Sem falar no lendário ucraniano Louis Krasner, que foi professor de Aírton Pinto - eu o via pela janelinha de vidro da porta, já bem idoso, dando aulas. Para ele foram escritos dois dos maiores concertos para violino do século 20: Alban Berg e Schönberg, por ele estreados).

Sergei Koussevitzky
Foram regentes de Boston, desde 1881, Sir George Henschel, Wilhelm Gericke, Arthur Nikisch, Emil Paur, Karl Muck, Max Fiedler, Henri Rabaud, Pierre Monteux, Koussevitzky, Charles Mûnch, Leinsdorf, Steinberg, Ozawa, Andris Nelsons, e, exceção à regra, James Levine, seu antecessor. Parece que havia uma certa predileção por grandes regentes de fora do país, mas nada a ver com isolar influências políticas, já que as orquestras americanas são todas privadas. Até na Filarmônica de Berlim, de Furtwängler e Karajan, hoje há Sir Simon Rattle e dois músicos latinos: um brasileiro e um venezuelano.

David Chew
No meu tempo, vieram para a Orquestra Sinfônica Brasileira – cujo primeiro regente foi o húngaro Eugen Szenkar – onze tchecos, incluindo meu professor Ladislav Bàlek (retornou ao seu país para ser solista na Sinfônica de Praga!), Zdenek Svab, Frantisek Batîk e outros. Tinha o magnífico fagotista francês Noël Devos e o português José Botelho, refinado clarinetista, e hoje o meu amigo violoncelista David Chew (agraciado com a Ordem do Império Britânico), idealista realizador do Cello Encounter.





Jean Noël Saghaard
Com minha volta ao Brasil, fui lecionar na Escola Municipal de Música, do Teatro Municipal de São Paulo, onde mais tarde fui diretor, convivi e fiz amizade com algumas das figuras mais interessantes do mundo musical, como o saudoso húngaro Gèza Kiszely, a quem já dediquei um artigo, o austríaco Gustave Busch, lendário fagotista que morreu tragicamente atropelado na 9 de julho com sua bicicleta, já bem passados seus setenta anos, o grande flautista e professor de gerações Jean Noël Saghaard - o melhor solo do Bolero de Ravel que já ouvi -, protagonista de alguns dos bons momentos da vida em minha estada como diretor. Verdade que às vezes não era fácil lidar com o Busch e, menos ainda, o Saghaard. Mas eu os compreendia e saía em defesa do que para alguns pareciam exageros.

Naomi Munakata
Músicos estrangeiros, aqui ou no exterior, só acrescentam. Passam a ser não estrangeiros, mas, adotando nossas terras, brasileiros nascidos em outros lugares. Pela Osesp, lembro a brilhante Naomi Munakata, de Hiroshima, que foi regente do Coro Sinfônico, meu amigo veneziano Emmanuele Baldini, spalla da orquestra, o excelente trombone baixo Darrin Milling, formado pelo Curtis Institute de sua Filadélfia, para citar os mais chegados. Estimulam seus naipes, servem de exemplo e lecionam, preparando nossos músicos para o futuro. Nos meus tempos de Osesp, havia meu amigo Jed Barahal, dos EUA, o uruguaio Hector Pace e o trompista americano Daniel Havens, entre outros.

Titta Ruffo
Nos anos 1940, sob a batuta de Armando Belardi, a Orquestra do Teatro Municipal preparou um concerto cujo programa trazia na capa o brasão da República, uma bajulada no Getúlio Vargas. Assinaram o cartaz do programa todos os músicos, e, curioso, fora uns raros brasileiros, havia famílias (ou seriam famiglias?) de italianos, como os Corazza, Bianchi, Coppoli, Capela. Até na inauguração do Teatro Municipal, em 1911, a Itália esteve presente: veio a companhia de ópera do florentino Titta Ruffo. O detalhe fica por conta do tamanho do fosso onde fica a orquestra, pequeno para o grupo. A Revista do Arquivo Municipal registra que, enquanto uma parte dos italianos tocava, os excedentes se embebedavam nos bares das cercanias.

Eleazar e alunos: Meier, Mehta, Abbado. Em Berkshire, Tanglewood
Em nenhum momento, em meus anos de EUA, senti-me um peixe fora d’água. Era tratado como todos, abordado às vezes por causa do maestro Eleazar de Carvalho, que além de assistente de Koussevitzky na Sinfônica, ao lado de Bernstein, havia lecionado para uma plêiade de regentes no Berkshire Music Center, de Tanglewood, desde os então jovens (hoje mitos) Zubin Mehta, Seiji Ozawa e Claudio Abbado até alguns com quem trabalhei, como Benjamin Zander. Eleazar, um brasileiro mestre dos futuros titãs!

Univ. Richmond Center for the Arts
Em 2006 houve uma Convenção Internacional de Contrabaixistas, em Richmond, Virginia, e eu fui convidado a falar sobre o arco, resultado de um estudo trabalhoso que foi assunto de tese, da qual extraí um pequeno livro. Entrei um pouco preocupado, pois vi até ex-professor meu na plateia, além de músicos das sinfônicas de Chicago e Dresden. Levei material para projeção e a palestra por escrito, só que logo no início vi que o papel me prendia, a coisa não ia ser fácil.

Larguei o texto e comecei a improvisar sobre o que havia pensado e escrito. Vieram me contar que, depois disso, a coisa fluiu com grande naturalidade e a palestra havia deixado muita gente bem impressionada. Percebi que ser brasileiro não era demérito algum, e eram vários vindos de fora, fiz amizades durante aquela semana que ainda perduram. A nacionalidade do músico é só uma: cosmopolita. O mundo passou na janela, e só Donald Trump não viu.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

JK: O PRESIDENTE BOSSA-NOVA E A CULTURA

“Bossa-nova mesmo é ser presidente / desta terra descoberta por Cabral / para tanto basta ser tão simplesmente / simpático, risonho, original”. Juca Chaves, aliás Jurandyr Czaczkes, fazia críticas aos políticos de todos os tempos, com seu humor cáustico e irreverente. “Brasil já foi à guerra / comprou porta-aviões / um viva pra Inglaterra / de oitenta e dois milhões”. Qualquer assunto era motivo para uma chacota musical, brincadeira crítica que atraía o público para suas apresentações, com um banquinho e um violão.

Tanques em Brasília
As críticas às “mordomias” de JK, se comparadas com as aberrações surreais por parte de muitos políticos de hoje, eram contos da carochinha. Mas rendiam discos, shows, e ajudavam “o Juquinha a comprar o seu iate”, dizia ele, esculachando ainda mais a cena, criando uma caricatura de si mesmo e jogando tudo no mesmo balaio. Era o Juca. Pouco depois disso, mais precisamente em 1964, viria o golpe e tal tipo de anedota – “presidente bossa-nova” - não passaria da metade do show. As mordomias e cambalachos do regime eram sussurrados no breu das ruas, nos cantos dos pátios das universidade e nos escuros dos bares, sempre sob a nuvem do medo.

Dilermando Reis
JK cercou-se de intelectuais e artistas. Fora os escritores que com ele trabalhavam, como Autran Dourado (meu pai), Geraldo Carneiro, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Lins e Nilo Aparecida, ligava-se a artistas plásticos como Guignard, Portinari e outros. Famoso “pé de valsa”, conhecido dançarino daquele tipo de estilo galante, tinha um apreço especial pela música e os músicos (aliás, conheceu dona Sarah, com quem viria a se casar, em um “arrasta-pé”). Circulavam no Palácio gente como o violeiro Renato Andrade, caipira mineiro de alta técnica instrumental, e o grande mito do violão Dilermando Reis, que chegou a dar aulas para minha irmã.

Camargo Guarnieri
Talvez nenhum governante tenha tido um músico – sim, pasme, músico! – da mais alta reputação como assessor: o grande Camargo Guarnieri, talvez o maior compositor de nossa história. JK Tratou de regularizar a situação trabalhista da classe, antes largada à sorte e insegurança, e deu-lhe status profissional, reconhecendo a profissão na CLT.

Eleazar na inauguração
Ao mesmo tempo, JK criou a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB), tendo à frente dois baluartes: o maestro Eleazar de Carvalho, que regeu na inauguração de Brasília, e José Siqueira, compositor e professor de altos coturnos, pesquisador e idealizador da Ordem, fora Villa-Lobos, Gnatalli e Mignone.

JK, com meu pai e Schmidt
Mais uma vez, bastaram quatro anos para que o golpe de 64 interviesse, pois “sindicatos estavam cheios de comunistas” (sic). Eleazar era um maçom conhecido pelas posições conservadoras, e Siqueira podia ter sua quedinha pela esquerda, mas era inofensivo (tempos em que o governo pediu à CIA americana que vigiasse os passos de Jorge Amado!). Voltando a 1960, JK também criou a Orquestra Sinfônica Nacional, hoje ligada à Universidade Federal Fluminense. Fundou a Universidade de Brasília (obra de Niemeyer), por insistência do Darcy Ribeiro, para que a nova capital não se tornasse “uma cidade interiorana ao invés de grande centro à altura”, argumentou meu pai, que ainda conseguiu, obcecado pela ideia, o tombamento da obra de Machado de Assis. JK também criou o Teatro Nacional de Brasília.

A fina flor da bossa-nova
Em 1964, o sonho acabou e foi entronizado Presidente- interventor da Ordem dos Músicos o Sr. Wilson Sandoli, obscuro cantor de boate de ligações nebulosas com o regime, que, graças a inúmeros artifícios, conseguiu capitanear a autarquia e todos os seus descaminhos por longos 42 anos! Toda a boa intenção de JK malogrou com a ditadura, que transformou a OMB em simples fonte de arrecadação de contribuições, braço do regime e nada mais. Paralelamente, na música popular, no fim dos anos 1950, no auge da efervescência, surgia ainda o movimento que mudou as perspectivas para o futuro: a bossa-nova.

Niemeyer e Lúcio Costa
Para planejar Brasília, JK chamou o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Niemeyer. Cercado pela intelectualidade brasileira, criou uma imagem de defensor da Cultura nacional e desenvolvimentista - os “50 anos em cinco”. Nesse ponto, JK não teve alguém sequer à sua sombra em nossa história. Não usava a música de forma populista, como fez Getúlio e seus “músicos práticos”, que bem lhe serviam em comícios, campanhas e andanças de autopromoção, em tempos em que não se sonhava com TV, aplicativos, redes sociais e outras mídias.  

Período de tamanha fertilidade intelectual e artística, e de tal apoio à Cultura e à música em particular, como foi o de JK, talvez tenha sido apenas o de D. João VI, nos treze anos em que esteve no Brasil. Com sua vinda, trouxe a capital do país para o Rio de Janeiro, e, por absoluta necessidade, criou a Real Biblioteca Pública (hoje Biblioteca Nacional), com um acervo inicial de 60 mil volumes. Em 1808, ano de sua chegada, D. João criou a primeira gráfica do país, e passou-se a rodar a Gazeta do Rio de Janeiro com máquinas próprias – antes disso, o “Correio Braziliense” era impresso na Inglaterra! Fundou ainda a Real Academia de Belas Artes, restaurou e reabriu o Museu de História Natural.

Investiu no compositor Pe. José Maurício, um grande nome da música de concerto, talento elogiadíssimo até no exterior, nomeando-o organista da Capela Real. Trouxe o maior compositor lusitano da época, Marcos Portugal, e o austríaco Sigismund von Neukomm, ex-aluno de Haydn, que foi professor, entre outros, de Francisco Manuel de Silva, autor do Hino Nacional.
Fora JK e D. João, o resto é o resto.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

INFLUÊNCIA DO JAZZ

New Orleans foi o berço de tudo. O caldeirão onde todas as coisas e pessoas se misturavam, como sintetiza o relato de James Creecy (que lembra música do Caymmi), após visitar a cidade: “Você já esteve em New Orleans? Se não, melhor ir”. “Franceses, espanhóis, indianos, créoles (mestiços descendentes dos colonizadores franceses), mulatos, ianques, gente de Kentucky, Tennessee. (...) Navios, arcas, barcos a vapor, ladrões, piratas, jacarés (...). Gigolôs, prostitutas, pessoas inferiores e toda sorte de gente suja...”
Antonín Dvorak
Nesse ambiente cresceu o jazz, nascido no mundo que desde sempre o embalou. Um turista francês comentou que no inverno eles dançam para se aquecer, e no verão para se refrescarem, dando a dizer que a cidade era uma eterna festa. Antonín Dvorak mudou-se para os EUA, para dirigir o Conservatório Nacional de Música, em 1892, e queria conhecer o que andavam tocando na América. Bebeu do jazz e do folclore dos EUA na Sinfonia nº 9, chamada “Do Novo Mundo”, e chegou a Stravinsky.
Os Oito Batutas
No Brasil, entre outros, era presente em Pixinguinha com seus Oito Batutas, choro com formação à maneira de Dixieland (o nome vem da música Dixie, de Daniel Emmet), gênero de jazz na verdade iniciado por brancos mas abraçado por todos em combos, pequenos conjuntos.
Mardi Gras
Em New Orleans, até hoje existe o tradicionalíssimo Carnaval (Mardi-Gras, terça-feira gorda), trazido pelos franceses, que tomou contornos únicos na cidade, uma atração turística e tanto. As bandas de Dixie tocavam em bailes, casamentos e até funerais. Quando Louis Armstrong cantou o hino gospel “Quando os Santos vão caminhando” (When the Saints go Marchin’ in), emocionou o mundo:
Louis Armstrong
“Ó Senhor, eu quero fazer parte desta multidão / quando o sol começa a brilhar / Ó Senhor / eu quero fazer parte dessa multidão” (trad. livre do A.), música gravada em inúmeros estilos por incontáveis artistas). Havia orquestras como a de Buddy Bolden e bandas como a de Papa Jack Laine no início do século 20. Jelly Roll Morton também foi um dos bambas desse início.
O Ragtime (de ragged time, lit. tempo rasgado) surgiu no final do séc. 19 e consolidou-se com Scott Joplin, sendo o gênero um dos grandes alicerces do jazz.
Eagle Band, 1916
Sidney Bechet, The Eagle Band, Woodland Band, nomes proliferavam na cidade que era efervescência pura, tudo com inspiração nos escravos negros sulinos das plantações de algodão e seus blues: “Tempo de Verão (Summertime), e sua vida é fácil / os peixes saltam/ e o algodão se ergue alto / Seu papai está rico e sua mamãe é bonita / então corra, bebezinho, você sabe, não chore”.
Duke Ellington Orchestra
A partir daí, o gênero se espalhou: na Chicago dos anos 1920, palco do crime organizado, predominava o jazz tradicional, como o de Morton e Armstrong, mas depois de certa decadência, reavivou-o o Dixieland, por volta de 1940. Vieram orquestras, como as de Benny Goodman, Count Basie e Duke Ellington, ao estilo swing, e nomes como Art Tatum, Coleman Hawkins e as divas do blues, Billie Holiday e Bessie Smith.
Bill Evans
O impressionismo francês, como o de Debussy, passou a influenciar o jazz branco de David Brubeck e o grande pianista Bill Evans, do chamado cool jazz. Evans esteve no Brasil e, no Antonio’s, no Leblon carioca, conseguiu atrair os grandes da bossa, como João Donato e Tom Jobim, em uma grande “canja”. Mas o gênero jazz não acabava mais, houve o bebop, o cool, o latin jazz, o jazz fusion - fusão com o pop ou rock - e por aí vai.

O jovem Carlos Lyra (Divulgação)
“Influência do jazz”, de Carlos Lyra, foi uma música que marcou época ao falar brincando das críticas ao suposto “excesso” de jazz em nossa bossa-nova – que, aliás, já nasceu cool, nos apartamentos da zona Sul Carioca: “Pobre samba meu / foi se misturando, se modernizando e se perdeu / (...) mudou de repente / influência do jazz / quase que morreu”. Mas a mistura nem era nova, só mudaram conceitos, harmonia, improvisação e outros elementos. O famoso concerto de estreia da Bossa no Carnegie Hall, em NY em 1962, passou a atrair toda a música popular americana, a exemplo de Stan Getz e Charlie Byrd. 
Carnegie Hall, 1962: Bossa-Nova para os americanos
No aeroporto, os bossanovistas foram recepcionados por alguns grandes nomes do jazz. No concerto, estrelaram Jobim, João Gilberto, Menescal, Bonfá e trupe, enquanto mitos como Tony Bennet, Miles Davis, Gerry Mulligan, The Modern Jazz Quartet e Cannonball Adderley sentavam-se entre as 3 mil pessoas que lotavam a plateia.
Villa-Lobos
Verdade que a música francesa da virada do séc. 19 para 20 foi decisiva para a formação de Jobim, além de Villa-Lobos, seu “norte”. Os franceses incrementaram suas harmonias, acordes complexos, dissonantes, com notas agregadas, inversões, tudo o que a modernidade europeia da virada do século 19 para 20 trouxe, mas o espírito do jazz prevaleceu na bossa-nova (Noel Rosa cantou, em 1930, “...e outras bossas / são coisas nossas” - parece que preconizando o que estava por vir e mudar nossa música de vez).
Vinicius e Tom Jobim
“Chega de Saudade” é tida como o grande marco inicial. Letra de Vinicius e música sublime de Jobim, começa em Ré menor, tonalidade lamentosa, e fala “Vai, minha tristeza”. Passa para um alegre Ré maior, quando desperta felicidade no compositor: “Mas, se ela voltar, se ela voltar, que coisa linda, que coisa louca...”. Tudo adornado com acordes fora das tríades (três notas) tradicionais, e carregados com 4 ou 5 sons, sem falar nos 15 acordes diferentes apenas na primeira estrofe.
O samba continua, a bossa continua, a MPB vem, traz o Tropicalismo, e nossa boa música sobrevive até a aventuras e modismos de péssimo gosto para fazer dinheiro. Salve a grande música brasileira!
Influência do Jazz, de Carlos Lyra

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

EM NOME DE DEUS

Karen Armstrong, autora de The Battle for God (A Batalha por Deus) é uma pesquisadora especialista em religiões, com ênfase especial para “o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo”, subtítulo do livro que peguei emprestado para este artigo (SP: Companhia das Letras, 2001. A publicação parece esgotada, mas existe em e-book). Karen é inglesa, OBE (Ordem do Império Britânico, alto título honorífico do Reino Unido) e entende do riscado: foi freira, mas decidiu trocar o convento pela Oxford University, entregue ao seu obcecado estudo das religiões, mantendo a fé cristã.

Karen (esq.) e religiosos
Com seu “Uma História de Deus – uma pesquisa de 4.000 anos de Judaísmo, Cristianismo e Islamismo” (1993), a autora aprofundou-se nas três grandes religiões monoteístas. Respeitada scholar, transita muito bem entre Budismo e Hinduísmo, ora pesquisando e palestrando sobre o judaísmo em Israel, ora no Concílio Religioso Islâmico em Cingapura. Lecionou em escola de formação de rabinos, passando a ser uma sumidade bem-vinda em todas as religiões.

Massacre em mesquita no Canadá, 30 jan 17: seis mortos
Matéria de uma edição da revista Veja da época do lançamento - em uníssono com várias outras resenhas - considerou Karen uma das principais autoridades sobre a história das religiões monoteístas e o fundamentalismo, que, com seus ‘braços armados’, “fuzilam devotos dentro de mesquitas, matam médicos em clínicas de aborto, assassinam presidentes e até derrubam governos”. E mais: “democracia, pluralismo, tolerância religiosa, liberdade de expressão, separação entre Igreja e Estado – nada disso lhes interessa”. A frase aparece em inúmeras resenhas sobre o livro, ilustrando o fanatismo e suas funestas consequências. É o mais importante depoimento que li sobre o assunto, e sua abrangência vai muito além das sinagogas, mesquitas e igrejas, chega ao âmago da origem e fonte dos radicalismos.

Bush piloto de caça
George Bush era ligado a alguma ala paralela da Igreja. Não seria surpresa se ele tivesse ligação com o Opus Dei, que de seu prédio milionário dos EUA preparou um golpe na Venezuela, para tentar guindar à presidência do único país da OPEP fora do Oriente Médio um dos barões do petróleo. O golpe durou dois dias. Antes de prosseguir com o Opus, cabe aqui lembrar que o próprio Bush pai - a confusão mental e o fascínio por seitas para-religiosas vêm de família! - já era aconselhado por seus assessores a separar Igreja e Estado, e que aquela espécie de proto-igreja com jeito de capela dentro da Casa Branca começava a lhe render problemas. Concordou, e passou a andar com a “separação entre Igreja e Estado” na cabeça. Certo dia, em discurso em Ohio, Bush pai, perguntado sobre a queda de seu caça da Força Aérea, quando foi obrigado a saltar de paraquedas e inflar um bote para aguardar salvamento, respondeu sobre o que lhe passava na cabeça naquele momento. Aproveitou a deixa e disse que pensava nos pais, nos filhos e... “na separação entre Igreja e Estado”! (MILLER, MARK. The Bush Dyslexicon. NY: WW Norton, 2001). Mark Miller fala abertamente sobre a dislexia dos Bush e seu envolvimento com o fundamentalismo.

O Opus Dei foi criado em 1928 pelo Pe. Josemaria Escrivá de Balaguer, com o apoio do ditador espanhol Francisco Franco, que via a oposição juntar-se à Maçonaria. Muito mais tarde, Paul Marcinkus, arcebispo-presidente do Banco do Vaticano (de 1971 a 1989), que havia se tornado um antro de corrupção, quebrou o caixa. O Opus saiu em socorro com o Banco Ambrosiano, e sufocou o rombo e o escândalo da Santa Sé. Em troca, foi entronizado o Papa Paulo II, polonês de perfil bem dócil, que criou a única Prelazia Pessoal do Vaticano para o Opus. Beatificou e canonizou Josemaria Escrivá, fundador da organização, no recorde de dois anos. Sucedeu Paulo II outro Prelado, J. Ratzinger, o Bento XVI, criacionista que condenou veementemente o jesuíta Pe. Teilhard de Chardin (1888-1955), autor de O Fenômeno Humano, já censurado pelo Vaticano décadas antes, por crer na possibilidade de convivência entre evolução, ciência e Fé. Bento XVI condenou as ideias de Chardin, pensador cristão benquisto no mundo inteiro.

"Papa Francisco 'remenda' o Banco do Vaticano, destruído por escândalo"
Com a sagração do Papa Francisco, após a renúncia de Bento XVI, começou-se a conter mais uma onda de corrupção no Banco do Vaticano. Francisco demitiu o novo presidente, tratou da saúde da instituição e se abriu para o mundo, tornando-se o maior líder religioso dos últimos tempos. O Banco se equilibrou graças a Francisco, e tudo dentro da maior discrição possível. Mas o Opus permaneceu presente no mundo, pois não há como combatê-lo, uma vez que prega um conservadorismo exacerbado, mas dentro da Fé.

Estamos à espera da indicação de um novo ministro para o STF, e o presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho, é forte candidato. Contudo, enfrenta resistências dentro e fora da Corte, apesar do apoio declarado de gente graúda. Ives é casto e celibatário, do alto de seus 62 anos, e contra o aborto - mesmo em caso de ameaça à vida da mãe ou da criança –, pesquisas com células-tronco, união civil, pílula anticoncepcional e divórcio. Um peixe fora d’água em várias decisões técnicas do STF.

O Prelado do Opus no Brasil, o jornalista e dono da Cásper Líbero, ligada à Universidade de Navarra (financiada pelo Opus), é Carlos Alberto Di Franco, também celibatário e declaradamente adepto do cilício – prática medieval que consiste em atar uma espécie de corrente de aço com espetos ao redor da perna durante uma hora diária para lembrar o sofrimento de Cristo.

No mundo de hoje, com Trump, Brexit, EI e tantos outros, grassa o fundamentalismo, representando um retrocesso radical (ou belicista) jamais visto. Esperemos que logo a tendência tenha um fim, e prevaleça a verdadeira obra de Deus.