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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

ATLETAS, ESCRITORES, MÚSICOS. TALENTO E... MUITO, MUITO TRABALHO

Marcel Proust
Os leigos, espectadores e torcedores pouco sabem o que custou para lhes proporcionar momentos de enorme emoção e alegria. Para abrir o tema, uma frase de Marcel Proust (1871-1922): “jamais o mundo saberá o quanto sofreram e o quanto lhes deve por nos terem dado tudo o que deram”. Serve também às bailarinas, com seus treinos de seis, oito horas diárias, dia após dia, em busca do gradus ad Parnassum (degraus do Paraíso, da perfeição), para aquele curto tempo de realização sobre um palco, seu altar. O atleta passa muitas horas, todos os dias, buscando melhorar sua performance, décimos de segundo a menos; para o instrumentista, o tempo é mais flexível pela maleabilidade da matéria musical.

Autran Dourado: trabalho metódico
Meu pai, o escritor Autran Dourado, dizia que não acreditava em inspiração, mas em “ideia súbita”. E as anotava volta e meia em cartõezinhos que levava no bolso. A literatura, mesmo, era trabalho de operário, de “formiguinha”, como a ele se referiu o crítico Humberto Wernek: com hora marcada para começar, bem cedo, hora para sair para seu ganha-pão. Dizia papai que quem vive de livros no Brasil, é livreiro, vigarista ou impostor, nunca um literato.

Henry Portnoi
Cada grande artista tem sua variação sobre o tema ‘o que é o trabalho’. O contrabaixista de origem russa Henry Portnoi, com quem tive aulas de repertório, me disse que “talento acaba”, no sentido de que é preciso manter a chama acesa, e que a facilidade musical pode ser um meio-caminho para a estagnação – ao passo que algum outro músico, aparentemente menos talentoso, com seu esforço constante e metódico consegue subir em linha reta para os andares mais altos (não por coincidência, Eleazar de Carvalho dizia coisa semelhante, e, também não por coincidência, ambos trabalharam por muitos anos em Boston, com Sergei Koussevitzky. Daí talvez a origem do ensinamento).

Edwin Barker
Meu professor Ed Barker – garoto prodígio, aos 16 na Sinfônica de Vancouver, 19 na Filarmônica de NY, 21 na Sinfônica de Chicago e desde os 23 na primeira estante da Sinfônica de Boston – dizia o mesmo, que era necessário lutar diariamente, o maior talento não basta. E mais: que há mil na plateia e apenas um no palco. Sobre ele, foi escrito um livro chamado Staying Power – algo como “A força de permanecer” (anos 1970).


No fundo, não há atalhos. Se Usain Bolt entrou para a história como novo ícone do esporte, para mim na galeria do Muhammad Ali, Garrincha e outros que vieram de baixo para chegar ao pico da montanha, foi pela ocasião, já que treinou em um país em que a corrida é o esporte nacional, pelas condições físicas ideais, pernas longas, músculos bem talhados, treino incessante. Fez o mesmo caminho do instrumentista, do compositor e do escritor, não mediu esforços e concentração para ser um vencedor. Sim, vencedor, porque o pódio do campeão, do solista ou do regente é o mesmo, do latim podium, dos anfiteatros da Roma antiga.

Wolfgang Amadeus Mozart adolescente
Claro, muito se fala de Mozart (1756-1791), mas o mito do superprodígio, do “predileto dos deuses”, encobre os bastidores de uma educação severa de papai Leopold, ele mesmo músico e professor afamado na Áustria, que obviamente educava os filhos com rigor e controle total dos estudos. Mesmo sendo um dos maiores gênios de todos os tempos, nascido com um talento acima dos limites, não veio ao mundo lendo partituras, transpondo, sabendo harmonia, contraponto, etc. O gênio lutou, com absoluta certeza, para levar seu talento à superação do possível. Bach (1685-1750), com sua vastíssima obra, estudava e trabalhava tanto que fazia crer que seu talento era secundário: “quem lutar o quanto eu lutei chegará onde consegui chegar”, disse com modéstia de luterano educado na rígida Eisenach.

Nos dias de hoje, o mesmo rigor e estudo faz-se exigir na música popular, ou melhor, na chamada MPB e suas variações. Se há algumas décadas dificilmente um músico popular lia partituras, o pianista, que geralmente tinha formação técnica e teórica suficiente para ler as notas, costumava ser chamado de “maestro”, o que sempre foi motivo de piadas entre os colegas. As exigências são crescentes nos EUA, na Europa, no Japão, assim como no Brasil, onde já se pode conhecer grande números de instrumentistas e cantores cada vez muitíssimo mais bem preparados.

Dom Um Romão
Incluem-se aí os bateristas, cujos grandes nomes do passado tocavam apenas “de ouvido”: Edison Machado, Dom Um Romão, Milton Banana, Aírto Moreira e outros. Hoje, a realidade é outra, o trabalho de estúdio e a necessidade de ensaios mais práticos e curtos exige boa leitura, o show bizz não pode parar, o ritmo do trabalho impede aquela coisa do passado de um grupo ficar mastigando longamente inúmeros ensaios até se chegar a um acordo musical.

Mas é importante ressaltar: não existe só a MPB, com ou sem influências do jazz, do impressionismo, do rock, do soul. A boa música brasileira inclui – e da maior importância! - Cartola, Nelson Cavaquinho, Luiz Gonzaga, Noel Rosa, seresteiros e cururueiros, entre outros. Quem se inclui nesse cenário não é para escolas formais de música: a tradição não pode morrer, deve ser livre, o estudo técnico serve bem melhor ao músico que visa ao competitivo mercado de trabalho.

[Esta é uma homenagem aos que chegaram ao pódio que sonharam para suas vidas. E aos que lutam com suor para alcançá-lo]



sexta-feira, 19 de agosto de 2016

JOSÉ, HERANÇA E METAMORFOSE

José estava feliz. Depois de amenizada a dor da perda do pai (sua mãe havia partido anos antes), chegara a hora de receber o imóvel, o único bem que lhe fora deixado de herança. Foram anos de inventários, despesas com advogado, documentos, cartórios, um vaivém e bate-pernas sem fim. Próxima etapa, passar o imóvel para seu nome e vende-lo, para cobrir despesas e dívidas pessoais – afinal, a maré não está para peixe. Ao fazer a pesquisa da documentação necessária, descobriu uma execução fiscal em nome de seu pai. Já bem idoso, havia se esquecido de fazer a declaração de renda durante quatro anos, o que significava um débito de 30 mil reais. José levantou um empréstimo bancário, financiou a despesa e saldou a conta – afinal, tudo dependia disso. (Herdeiros recebem não apenas os bens, mas também as dívidas).

Depois dessas despesas, José deu entrada na documentação em cartório. Exigiram muitos documentos, e como mora no Rio, a coisa era ainda mais complicada. Para averbar a casa em seu nome, tinha de pagar 4,5% de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), pela tabela de mercado do próprio estado, e não por valor declarado ou valor venal. O ITBI municipal, de 2%, passa a acompanhar o valor do estado, totalizando 6,5% sobre o valor do imóvel a preços oficiais, de R$ 700 mil A sorte lhe sorriu!

Uma estação de metrô será inaugurada a 150m do imóvel, o que fez seu valor ser catapultado de R$ 195.200 (valores de hoje, pois haviam sido pagos 50 mil em 1996) para R$ 700 mil. O pai sem saber havia feito um grande investimento, ganhou na loteria, pensou ele. Mas, no cartório, ITCMD e IBTI somaram R$ 45.500 (6,5% sobre 700 mil)! Desta vez, vendera o carro e a moto do filho, para ajudar, e precisou de outro empréstimo. Quando os gastos já alcançavam R$ 75 mil (execução fiscal da Receita mais os impostos acima), soube que ainda haveria mais: 2,5% de laudêmio, imposto a crédito da Marinha, ou seja, a União, coisa instituída pela enfiteuse, em meados do século 19. Em Petrópolis, esse imposto ainda é devido à Família Real – sim, acredite, 127 anos após defenestrada por Deodoro -, e à conta do José já se somavam outros quase R$ 17.500, totalizando R$ 92.500!

Mas José não sabia que ainda teria de pagar outros penduricalhos que, juntos, levam sua despesa muito mais longe: No Rio, paga-se 20% para o  FETJ (Fundo Especial do Tribunal de Justiça), assim distribuídos: 5% para o FUNPERJ (Fundo Especial da Procuradoria Geral), mais 5% do FUNDPERJ (Fundo Especial da Defensoria Pública Geral), 4% do FUNARPEN/RJ (Fundo de Apoio aos Registradores Civis das Pessoas Naturais), e uma caixinha de R$10,86, por cada ato praticado, sejam quantos forem, divididos igualmente para a Mútua dos Magistrados do Estado, a Caixa de Assistência do Ministério Público, a Caixa de Assistência dos Procuradores do Estado, a Caixa de  Assistência aos Membros da Assistência Judiciária, a ANOREG/RJ (Associação dos Notários e Registradores),  ACOTERJ (Associação dos Conselheiros dos Tribunais de Contas do Estado e dos Munícipios). Paga-se ainda R$15,63 para cada consulta ao BIB (Banco de Indisponibilidades de Bens). Total: R$ 95 mil.

Pronto, José, você pode se acalmar, não se deixe levar por essa metamorfose que está te corroendo, amargurando, transformando-o não em outra pessoa, mas em algum animal, talvez, um estranho que a tudo vê com ódio e desconfiança. Sinto muito, amigo, porém tem mais - e más - notícias para você, e tem de ser rápido! 

Você tem até o último dia do mês seguinte da venda para declará-la ao fisco, pois o leão anda faminto e desenjaulado. Você tem de pagar ainda o GCAP, imposto sobre ganhos de capital, que trabalha com percentuais de 15, 20 ou 30%. Mas não se aflija, a Receita tem um programinha gratuito que faz o cálculo para você. Só mais uma notícia ruim, e paro por aqui, não quero lhe deixar mais amargurado do que já deve estar.

Conforme a Medida Provisória editada pelo governo em 2015, vai pagar 15% sobre o lucro imobiliário que você nunca teve. Pior notícia, José, conto de uma vez: não se calcula correção monetária, deixaram de considera-la a partir de 1996, quando seu falecido pai adquiriu, com muito esforço, o imóvel por R$ 50 mil. Se você vendê-lo pelos R$ 700 mil de mercado, seu lucro imobiliário terá sido – acredite – de R$ 650 mil (700-50)! O maravilhoso aplicativo disponibilizado pela Receita faz os cálculos por você, é só ir preenchendo, para chegar ao seu imposto no valor dos 15%, ou seja, R$ 97.500. Fique sentado, José, sua conta chegou a R$ 190 mil no final! Sei que você ficou pendurado em dívidas, papagaios, sem carro, e sua vida se tornou um inferno.

Mal dorme, o mercado de imóveis anda ruim, você está endividado e só tem uma oferta de compra: R$ 500 mil, e deve pegá-la pois o tempo é implacável, o interessado pode comprar outro, a maré já anda ruim para você. Por outro lado, amigo, recebendo menos, seu lucro imobiliário baixou para R$ 75 mil, por conseguinte sua despesa total foi de apenas R$ 167.500! Subtraindo esse valor do preço de venda, restam-lhe R$ 332.500. Mas como? Gastou R$ 15 mil com aqueles reparos urgentes, telhas, fiação, pintura completa e encanamentos? Então esqueça-se do valor já achatado de R$ 500 mil e resigne-se com sua sobra de R$ 317.500, menos da metade do que pretendia receber.

E agora, José? Leia menos Kafka e mais Drummond, deleite-se com a poesia e vá ser gauche na vida. Não se deixe virar um inseto esmagado por esses números!


sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O CIENTISTA, O JUIZ E A ENTROPIA UNIVERSITÁRIA

(Entropia, nas ciências exatas: desordem)

Não sou muito de ler artigos não-assinados dos editoriais dos grandes jornais. Mas um, no dia 4 de agosto em O Estado (“A justiça e os baderneiros”), chamou-me a atenção sobre um tema a que já me dediquei a escrever ao menos duas vezes. Em geral, textos assinados têm um perfil mais identificável, pois, sabendo-se quem os escreve melhor compreendemos a posição do autor, o que nos possibilita usar os ‘filtros’ que quisermos, ao passo que os vários editoriais dos grandes refletem a opinião do jornal, permitidas certas variações.

Palácio da Justiça, Campinas
Apesar disso, achei preciosa a abordagem do artigo central da página 2: o juiz Guilherme Fernandes Cruz, da 9ª Vara Cível de Campinas, condenou nove alunos a indenizar por danos morais o professor do Instituto de Matemática da Unicamp Serguei Popov, impedido de dar aulas em “greve” estudantil, por constrangimento ilegal e depredação, entre outros, o que contribuiu para minar o movimento. O próprio Popov acha que o levante já estava baleado porque havia se estiolado. Importante lembrar que alguns estudantes tentam impingir que o direito de greve da classe trabalhadora se estende a eles – contra o princípio básico na legislação pública de que “se a lei omite, ela não permite”. Direito de faltar, claro, existe, e devemos respeitá-lo. E aos professores o de registrar faltas.

Na mesma época em que alunos invadiram o Conselho Universitário (CO) da Unicamp e fizeram piquetes para impedir as aulas, o professor Serguei Popov, que ficou conhecido do público por uma matéria de telejornal de uma grande emissora, não se conformou em ver seus caprichados cálculos na lousa serem apagados por um rapazinho como se fossem desenhos do tipo scraps (algo como rabiscos distraídos). Pois aqueles complexos cálculos haviam sido meticulosamente grafados por um cientista que poderia lecionar em universidades americanas. Popov, premiadíssimo brasileiro de origem russa, fluente em seis idiomas e que nos dá o privilégio de tê-lo como titular do IMEC/Unicamp, traz na bagagem PHDs e diversos títulos da Universidade de Moscou, emoldurados por dezenas de publicações. Na reportagem, o professor aparece humilhado por um garotinho sonso e quase imberbe – coordenador do DCE! - que, em vez de fazer traquinagens sem causa em meio a horríveis batucadas, melhor estaria agradecendo à sua universidade a chance de ter o matemático como mestre, mesmo que em uma outra unidade que não a sua, já que ele veio de outro Instituto. 


Negando-se a ser humilhado e em defesa de seu direito de trabalhar, Popov entrou com ação na Justiça, cujo despacho determinou também a retirada de postagens ofensivas sobre o professor das redes sociais, sob pena de multa de R$ 1.000,00 diários. Isso levou a maioria dos alunos – seria essa uma maioria até então silenciosa, antes mercê de minoria radical? – a tomar uma posição e determinar o encerramento da “parede” e retomada das aulas, o que aconteceu em parte. A crise gerou um racha sem precedentes, processos judiciais e sindicância para expulsão de alunos. O "estudante do apagador" se acha vítima, porque é cotista e "negro" (declarado). 

USP
Nas “três públicas” estaduais as agressões, perturbações, depredações, vandalismos, humilhações e piquetes chegaram a níveis insuportáveis. Agiam em nome de uma obtusa “democracia direta”, e, parecendo seguir uma cartilha fascista (apenas parecendo, porque sequer devem saber o que seja, hoje compartilham outras cartilhas pré-fabricadas), acham que quem contraria a decisão de sua minguada e radical minoria é que está errado. Do texto do jornal, extraio outra observação fundamental sobre o tema, que vai ao cerne da questão: que as reivindicações “foram formuladas para não serem atendidas!”
Gastos com a falha de pagamentos da Unicamp com relação aos repasses do ICMS
e, abaixo, as "reivindicações" dos alunos grevistas. (Folha, Cotidiano, 11 ago 2016)


(Reprod. EPTV)
Cientes da crise que se abate sobre o país e ameaça abater, literalmente, as universidades, querem aumentos salariais irreais para servidores, creches, “mais alojamentos e restaurantes”. Simples assim. Isso, com o custeio e a máquina dos salários ceifando até os fundos de reserva e verbas de pesquisa. E mais: pensam que qualquer menção à legislação e à Constituição seria uma “criminalização” do movimento estudantil, como se a agitação de sua nau sem rumo flutuasse acima da lei, intocável. A Constituição Federal, nunca é demais lembrar, estabelece que “todos são iguais perante a lei”. O texto do jornal cita ainda o “arremedo de democracia direta como manto que oculta a defesa de ideologias autoritárias”. As palavras são certeiras, e o assunto deve abrir espaço para muitas reflexões.

Calouros 
Sou docente com tempo avançado de USP, e tenho visto de tudo. Mesmo em afastamento, acompanho todo esse processo que gira em espiral sobre si mesmo, e o faço agregando as preocupações naturais por meus dois filhos uspianos - uma da Química, que se forma este ano, e que já me deixou seriamente apreensivo com a violência no campus algumas vezes, e outro, calouro da Engenharia de Materiais. Por sorte, essas unidades têm muito melhor consciência dos fatos e da preocupante situação da universidade, chegando no máximo a um tíbio e formal apoio. Quando necessário, recorreram até a “aulas clandestinas”, para evitar a interrupção do trabalho e estudos ante o patrulhamento impiedoso das minorias.


Daniel Cohn-Bendit, "Dani, le Rouge", em Paris,1968
Temos – enquanto o país e o estado suportarem – um ensino público e gratuito, as bolsas de pesquisa que ainda restam e o melhor ensino da América Latina. Para os pobres que logram ingressar e conseguem sobreviver estudando, assim como para os poucos ricos que - sem generalizar, por favor - são os que podem se dar ao luxo de se imaginarem líderes franceses de 1968, se preciso estendendo-se mais um ou dois anos em seus estudos, e se chegarem alguma hora a se formar, deixarão visível em seu histórico a marca da desigualdade que apregoam combater. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

“FIGURAS MUSICAIS...” AÍRTON PINTO

Se tivesse de apontar um dos melhores músicos que o Brasil já teve, que aliasse capacidade técnica e um jeito inimitável de comandar, ele seria certamente Aírton Pinto. Como spalla (violino solista) da Osesp, era um músico seguro, um líder sem estripulias na condução de seu naipe ou da orquestra inteira. Como colega era bem-humorado, sem nunca deixar de ser exigente no trabalho. Não se fazia “professor” das cordas, raramente dizia alguma coisa, mas quando o fazia era com precisão e sem estender-se em tediosas e desnecessárias exibições didáticas.
Toda essa segurança e cordialidade Aírton ganhou na mais britânica das cidades dos EUA, onde foi estudar e terminou ficando. No New England Conservatory, de Boston, uma das mais reputadas escolas americanas, logo se destacou, sendo admirado por seus mestres. Entre eles o que moldou seu refinado e encorpado som ao violino, o lendário Louis Krasner, que estreou os concertos de Alban Berg e Schönberg. 
Alban Berg
(Uma das minhas maiores emoções musicais foi tocar o solo de contrabaixo no concerto para violino de Alban Berg, chamado “À memória de um anjo”, tendo Aírton como solista – e justo o de Berg, mestre de um de meus professores de composição, Joe Maneri. De uma forma ou de outra, entre Aírton, Krasner, Maneri e Berg, formara-se ali um elo quase místico para mim, quando o músico se transporta imaterialmente para um lado da obra que não se lê na partitura, apenas se sente).

New England: Jordan Hall
Fui para Boston em 1977, e em 1978 ingressei no mesmo New England Conservatory onde Aírton estudara e foi depois professor! Uma de minhas grandes curiosidades era conhecer o famoso professor Krasner. Pelo pequeno vidro na porta, pude ver o incansável mestre algumas vezes em sua sala – janelinha, aliás, bastante conhecida e alvo de curiosidade geral. Ora, ali trabalhava um mito!
Boston Symphony Orchestra
Talentosíssimo, Aírton logrou ser aprovado na Boston Symphony Orchestra, uma das melhores do mundo. Mas não foi apenas isso: como era exímio pianista, passou ao mesmo tempo na prova para piano de orquestra, e quando a partitura exigia, tornava-se pianista, o que também fazia com bom-gosto refinado. Estava ali um músico completo, que às vezes se sentava ao piano com os alunos, e, outras, regendo o ensaio, preparava a orquestra para algum concerto, fazendo de solista. Com naturalidade, tocava o concerto de Grieg, algum de Beethoven ou Mozart, tirando-os do bolso na hora.
A Truta: manuscrito
Era também um excelente camerista, e parte essencial de um bom grupo. Tive a grata honra de participar com ele de felizes momentos musicais junto a grandes músicos, como o violoncelista Antonio Del Claro, a pianista Daisy de Luca e o violista Marcelo Jaffé. Trabalhávamos na casa de Daisy o belo quinteto A Truta (Die Forelle), de Schubert, para uma apresentação. Ambiente mais descontraído não poderia haver.
Hoje, posso contar um episódio, com certeza Aírton não se importará de sabe-lo agora: tendo ele ido ao banheiro, Del Claro e Jaffé, este último mais um grande piadista, imitavam o sotaque carioquíssimo do violinista: “minhaix cordaix extão secaix”, disse Del Claro, “aix minhaix também”, emendou Jaffé. Aírton voltou do banheiro e, claro, percebeu alguma coisa estranha acontecendo. Fingiu que não se interessava e retomamos os ensaios sorrindo.
A também saudosa Martha Herr
Outro fato curioso na minha convivência com Aírton foi quando ele, na qualidade de especialista, veio com sua colega de Unesp, a saudosa Martha Herr, para juntar-se à banca de exame da minha defesa de tese de doutorado, na Usp. Soube que houve uma conversa entre os dois sobre o texto, na Unesp. O alvo seria a ausência de notas de rodapé – uma formalidade “must”, coisa mais recente no meio acadêmico. 
Os rodapés...
Eu, pessoalmente, preferia as notas de fim de texto aos “rodapés”, até brincava que eles eram uma espécie de coitus interruptus a cortar a fluidez da leitura para remeter a uma nota no fim da página, perturbando a atenção. Pois corri na biblioteca e fui atrás de dois nomes certos, o intocável Sábato Magaldi, professor emérito e depois acadêmico da ABL, falecido recentemente, e outro emérito e hoje também imortal da Academia, o grande Alfredo Bosi. Antes da defesa, tirei da minha maleta as teses – sem rodapés – dos dois grandes ícones e deixei-as sobre a mesa, como que distraidamente. E não é que funcionou? Nenhuma pergunta sobre pisos, batentes ou rodapés. A defesa foi longa, com questões de alto nível, um belo desafio.
Antigo IA-Unesp
Algum tempo depois, a Unesp mandou regularizar a situação de todos os professores, via concurso. Aí, coisas do destino, eu fui ser banca do Aírton. Simplesmente disse: Aírton, com seu conhecimento, vou aproveitar cada minuto de seu concurso. E pude perguntar tanta coisa sobre a técnica do arco, área de meu interesse principal, que tudo pareceu uma conversa amigável e proveitosa – mas como questionar Aírton? Era a minha vez!

No dia 17 de novembro de 2009, eu estava, depois de 27 anos sem lá voltar, em viagem a Boston, a convite. Estive no New England e na Boston Symphony, e ouvi o nome do Aírton Pinto ao menos 5 vezes em um dia. À noite, recebi uma ligação do amigo Renato Bandel, exímio violista, que, sabendo de minha amizade com o Aírton, foi cauteloso na notícia: meu amigo, aos 73 e pleno de vigor, havia falecido de aneurisma cerebral. Assim mesmo, de repente. Uma pancada eu estar logo ali, em Boston, e ouvir a má notícia, depois de tantos anos: mais uma das coincidências de nossas vidas. 
Aírton mudou-se daqui, mas a amizade e a admiração continuam. Abraço e saudações terrenas, Aírton. Bons solos!