LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

BILL HALEY E O BALANÇO DAS URNAS

“One, two, three o'clock, four o'clock rock / five, six, seven o'clock, eight o'clock rock / nine, ten, eleven o'clock, twelve o'clock rock / we're gonna rock around the clock tonight”. Em 1955, quais de nossos pais ou avós não dançaram ou curtiram Bill Haley (pronuncia-se 'rêilei') e seus Cometas, o ‘rock’ da classe média branca, destilado das ricas origens afro-americanas, ritmo que mudou o mundo? Devem a ele Elvis Presley, The Beatles e uma legião de outros artistas. “Vista seu belo vestido, docinho, nós vamos nos divertir quando o relógio bater” (Trad. livre do autor). “Nós vamos dançar ao rodar do relógio esta noite / vamos dançar, dançar, dançar até raiar forte a luz do dia / nós vamos dançar, vamos ao rodar do relógio esta noite” (T. do A.). (Veja e ouça abaixo "Rock around the clock")


O balanço de Haley chegou à classe média brasileira, inspirou a Jovem Guarda e influenciou toda a nossa música popular, notadamente via Tropicalismo, e foi tema de novelas e inúmeros filmes. ‘Rock’ não quer dizer ‘pedra’, é um verbo que significa balançar, na dança às vezes plena de estripulias, saltos, malabarismos com as mocinhas de vestidinhos pregueados e pernas para o ar. E “Rock’a’by baby / on the tree top / when the wind blows / the cradle will rock…” é letra de uma cantiga de ninar tradicional dos EUA, que eu cantava para meus filhos, segredo do bom embalar: “Balança, bebê / sobre o topo da árvore / quando o vento sopra o bercinho balança / se o galho se quebra o bercinho cai / com ele o bebê, e tudo se vai” (T. do A.).


Haley e sua dança de números vieram-me à mente na semana que se passou, ao assistir na TV a uma reportagem sobre uma pesquisa eleitoral brasileira. Onde será que duas mil pessoas foram entrevistadas? A pesquisa aconteceu via telefone ou nas ruas? Mais: a listagem dos candidatos estava em um círculo a ser girado e entregue à livre escolha do paciente (em duplo sentido) da entrevista? Ou estava em ordem alfabética ou trocada, favorecendo algum nome? Mais importante: o método atende proporcionalmente ao universo de eleitores segundo sua distribuição pelo país? (Cada estado da União, classes sociais, a formação escolar e outros parâmetros fundamentais?).

Muitos me perguntam: "você por acaso já foi entrevistado? Pois eu nunca”. Eu tive a infelicidade de ter sido, em uma eleição para prefeito de São Paulo. Perto de casa, uma senhora me parou, e com o famoso ‘disco aleatório’, sem gira-lo, o dedo em cima do nome de um candidato, então tido como  favorito, ao invés de me mandar escolher, perguntou-me: “o senhor votaria neste candidato?”. A pesquisa estava viciada. Disse apenas adeus. Naquele ano, o nome que foi apontado era favorito na pesquisa, a boa distância da segunda colocada, mas perdeu por uma ‘súbita mudança’ (sic) nos últimos 3 dias, um passe de mágica. Ungida, a Prefeita tomou posse ante a surpresa da enorme reversão das expectativas.

Ainda nesta semana que passou, um importante instituto de pesquisas eleitorais, por encomenda de um grande jornal brasileiro e uma das maiores empresas de televisão aberta, interpretaram os mesmos números de formas diferentes: de acordo com o jornal, uma candidata “amplia vantagem” (manchete de primeira página) sobre sua concorrente, em vista de um ‘acréscimo’ duvidoso em qualquer estatística: coisa da ordem de 2% a mais para uma e 1% a menos para outra. Por sua vez, a emissora noticiou que as posições das duas supostamente mais bem colocadas se mantiveram, e ressaltou o mais importante, o virtual empate no segundo turno, coisa que não mereceu destaque na manchete do jornal. E nada de outros candidatos na chamada!

Nação de primeiríssimo mundo, o Reino Unido realizou recentemente um referendo sobre a independência da Escócia. As pesquisas, feitas por órgãos independentes e confiáveis em um país tido como absolutamente sério mostravam uma constante: 4% de diferença em favor do ‘não’. Mas o resultado final passou ao largo das duas maiores pesquisas: a diferença entre o ‘sim’e o ‘não’ foi de 10% - um ‘erro’ de 6%, um enorme desvio estatístico às vésperas do pleito! Isso, em um país tão sério que o líder do voto pelo ‘não’ no parlamento escocês, Alex Salmond, imediatamente reconheceu a derrota e pediu aos compatriotas que a acatassem, e apoiassem a permanência do país no Reino Unido.

Faço breve paralelo com a economia, ciência econômica por definição, que interpreta números. Pois números são sujeitos a visões e visões, tanto que há escolas como as de Cambridge, do MIT, de Harvard ou de Chicago, que de certa forma utilizam suas formas de pensar os números de maneira bem particular, sob óticas e ideologias diferentes, até rivalizando-se. Voltando às nossas pesquisas, não vou fazer ilações (por falta confessa de elementos) sobre métodos, confiabilidade, margens de erro e menos ainda a lisura desses levantamentos, encomendados por órgãos de imprensa, confederações e outros.


Se na economia há números voláteis, cifras que se reportam a situações reais, na política, mesmo que ouvindo apenas 2.000 pessoas de uma população de mais 142 milhões de eleitores (0,0014%, ou uma opinião para cada 17 mil votantes!), os resultados carregam o discreto charme da profecia. O melhor a fazer, portanto, é esquecer a “Lei de Gérson” (“o brasileiro gosta de levar vantagem em tudo”) pensar e usar o coração na hora de votar, deixando o resultado à decisão do povo, entre todos os candidatos. Do balanço do Bill Haley, fiquemos com a música que o elegeu estrela, com seu ministério de incríveis “Cometas”.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

UMA ALEGORIA POLÍTICA SOBRE A ÓPERA ‘A FLAUTA MÁGICA’, DE MOZART


Capa do programa de estreia de A Flauta Mágica
A FLAUTA MÁGICA (die Zauberflöte) é uma das maiores obras de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), entre as inúmeras que produziu. Por seu simbolismo, alusões à maçonaria francesa, à vida na corte austríaca e a política na era da Rainha Maria Theresa (que surgirá na ópera como a Rainha da Noite), tornou-se assunto para estudo não apenas artístico, mas também literário e histórico, além de farto material sobre a atuação da maçonaria da época. Com libreto (texto) escrito por Schikaneder, maçom da mesma ‘loja’ de Mozart, as alusões à sociedade discreta (secreta?) a 'estória' passeia por símbolos e signos – um deles, o número três, está presente em vários momentos -, entre desafios e provas da maçonaria de linha francesa da época, que eram o caminho rumo à iniciação e posterior conquista dos graus hierárquicos a serem galgados nos traços bem delineados desde os escritos da sociedade maçônica desde a antiguidade.

Ilustração: um 'Singspiel' típico da época
COMO NESTE TEXTO ESTAMOS TRATANDO DE UMA ALEGORIA, é melhor irmos desde já aproximando a 'estória real' da ópera à fantasia de nossa livre interpretação, para improvisarmos à nossa maneira e à luz dos tempos atuais sobre o texto original da obra. O que se segue não é uma parábola e, menos ainda, uma fábula: é o retrato de uma visão política atual do simbolismo concebido musicalmente por Mozart para a riquíssima cena a se desenrolar no palco. A Flauta Mágica é um Singspiel (ópera de espírito cômico entremeada com diálogos falados), o que a torna atraente ao público, fora algumas árias bastante conhecidas do leigo – uma delas, até pela voz de um recente falso contratenor (via falsete, pois contratenor é voz em extinção) brasileiro surgido da música popular, Edson Cordeiro, que ficou famoso cantando obviamente em tonalidade bem mais baixa do que a original, chegando a seus ‘quinze minutos de fama’ sem qualquer associação à obra-prima mozartiana em si.

Cortinas do Royal Opera House, Londres
NOSSA ALEGORIA SOBRE A FLAUTA MÁGICA versa sobre esta ópera em due turni (dois atos). Nossos personagens principais, são, com seus respectivos intérpretes, e respeitando a simples classificação vocal do próprio Mozart na partitura: a Rainha da Noite (soprano), papel interpretado por Vilma Joseph), Sarastro (baixo, papel de Luigi Nacci Lully), o grande líder dos sacerdotes de Ísis (deusa da saúde e do amor) e Osíris (deus da morte e ressurreição). O sumo sacerdote, contudo, não detém o poder diretamente em suas mãos.  Tamino, o príncipe (tenor, papel de Édouard Duchamp), Pamina (papel da soprano Marín Silvia), filha da temível Rainha da Noite, e Papageno, o caçador de pássaros (papel do barítono Eccio Neige) que acompanha a certa distância Tamino (Édouard) e Pamina (Marín) em sua 'peregrinação' de longo percurso rumo à iniciação. Por uma questão de espaço e conveniência ao texto, nosso libreto alegórico deverá se concentrar nesses personagens, e, por licença poética, permitir-se a algumas liberdades quanto ao texto original. Que se abram as cortinas!

Encenação da "Flauta" no Metropolitan Opera House, em NY
EM CENÁRIO INSPIRADO NO EGITO ANTIGO, pleno de esfinges e símbolos, uma virtuosística abertura musical de arcos saltitantes nos instrumentos de cordas, antevê uma famosa ária - que é uma parte cantada por solista ou solistas de uma ópera. A Abertura instrumental seduz o público à primeira vista. Dando início ao ‘primo turno’, os arautos de Sarastro (Luigi Naccio), o grande rei do sol, articulam para que Pamina (Marín) seja arrastada para longe do poder da poderosa Rainha da Noite (Vilma), cujo canto chega a ser mais agudo do que o mais agudo dos pássaros, com volteios virtuosísticos, além de ser dona de um visual agressivo condizente com seu papel. A Rainha (Vilma) dá ordens para que deixem Pamina (Marín) embaixo de seus braços para reinar absoluta. Um dos pontos altos da ópera é a absolutamente incrível ária da Rainha: ‘A vingança do Inferno ferve em meu coração’ (Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen: veja e ouça abaixo com a fabulosa soprano Diana Damrau no papel da Rainha da Noite, talvez sua melhor performance gravada da área, tanto pelo canto eletrizante quanto pelo seu dramático desempenho cênico).

Tamino e Pamina:
"A divindade é a meta pela qual homem e mulher lutam"
O DESTINO FAZ TAMINO (Édouard) APAIXONAR-SE POR PAMINA (Marín), e, buscando serem iniciados nos caminhos ocultos do poder da sociedade, conforme os ritos maçônicos de então, o par passa por provas e privações, que são vencidas uma a uma por Tamino e sua flauta mágica e Pamina, com seus sininhos – sempre seguidos à meia distância pelo caçador de pássaros Papageno (Eccio).

Figurino de Papageno, com a gaiola nas costas,
conforme usado pelo próprio libretista Schikaneder na estreia
PAPAGENO  FALHA ao caçar um pássaro gigante, não consegue dominá-lo e Tamino (Édouard) é arrastado e levado pela enorme ave para o desconhecido, deixando vivo a Pamina (Marín) apenas seu espírito e a magia de sua flauta.

Pamina e Tamino (com a flauta): Kate Royal e Joseph Kaiser,
em encenação no Royal Opera House, de Londres
SOZINHA, PAMINA (Marín) PROSSEGUE EM SEU DESAFIO, levando o espírito do amado Tamino (Édouard) e as ideias gestadas durante o breve enlace do casal. Após inúmeras aventuras, Papageno (Eccio), sem Tamino (Édouard) à sua frente, acaba tendo de deixar Pamina (Marín) à sua própria sorte.
OFUSCADA POR UMA PODEROSÍSSIMA LUZ, a Rainha da Noite esvai-se ao nada, juntamente com seu séquito. Pamina (Marín) chega então ao final da longa trilha, sendo admitida na ‘Ordem’. O coro, em júbilo, entoa em êxtase “Vocês atravessaram a noite”, concluindo a magnífica cena.

O cenário desta alegoria sobre A Flauta Mágica
COMO EM TODA OBRA DE ARTE, desde alguns conceitos mais antigos, e outros mais recentes como em Machado de Assis (“Capitu”) ou Pirandello (“Assim é se lhe parece”), nossa alegoria política sobre esta obra-prima de Mozart, que aqui se encerra, deixa à conclusão do leitor a interpretação do final da grande obra. Trata-se apenas de um retrato do previsível, e variações sobre esse retrato são possíveis, mas já são muito poucas, já que os desfechos antes previsíveis são agora razoavelmente prováveis. Nossos anseios reais, sejam quais forem, estarão sempre submetidos aos fatos, e não às fantasias do inconsciente coletivo, aos discursos inflamados ou à sedução das palavras, paixões e bandeiras. Por isso o gran finale desta alegoria, como defendia Umberto Eco (in Opera Aperta, de 1962), ainda será, por ora, uma 'obra aberta'. Quem viver verá.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

DE COMO BEM SE COMPORTAR EM UM CONCERTO OU SHOW


Estudante de direito. Foto: arquivo pessoal (G1)
Há alguns meses, ganhou as páginas da imprensa e redes sociais, gerando longas discussões, um incidente acontecido no Teatro Municipal do Rio de Janeiro que, virando manchete de cadernos de cultura, escapou das páginas policiais na imprensa. O embate na plateia chegou às vias de fato, com hematomas no rosto da protagonista, boletim de ocorrência, e o contradito declarando que ela apenas caiu, machucando-se. E tudo começou porque um francês, sentado atrás da moça, reclamou que ela não parava de falar ao celular durante a apresentação. Por sua vez, ela argumentou que apenas dizia à sua mãe que estava passando mal. Daí, acertou um programa de concerto no indignado francês e ele... Bom, cada um com sua versão, como era de se esperar. Mas quem viu sabe.

Cena comum em concertos e shows, mesmo proibido
o uso de celulares e congênres
Já no Municipal de São Paulo, há alguns anos, um celular tocou exatamente em uma parte suavíssima da obra que era conduzida pelo maestro Ira Levin. Pois tocou algumas vezes e parou. Ao invés de discretamente desligar o aparelho, o dono do celular respirou aliviado. Para seu desgosto, veio mais uma série de toques. Abrindo a regra na história da casa, virou notícia no caderno de cultura de um jornal de São Paulo. Não houve feridos - fora a música, que saiu com seus arranhões.
Alan Gilbert, Regente Titular de New York Phil
Essas ‘intervenções’ eletrônicas não são exclusividade brasileira, como alguns poderiam supor: em 2012, o maestro Alan Gilbert, regente titular da Filarmônica de Nova Iorque, já no último movimento da 9ª Sinfonia de Mahler, foi obrigado a parar a música e descer até o dono do toque de celular conhecido como ‘marimba’ ordenando-lhe que desligasse o aparelho (não era um concerto para marimba, e muito menos para celular, desnecessário dizer). Consta que foi a primeira vez que a Filarmônica parou, em seus 170 anos. Gilbert retornou ao palco, encerrou a sinfonia e recebeu os mais calorosos aplausos da plateia lotada do glamuroso Avery Fisher Hall, do Lincoln Center – ovação devida à beleza da performance, e aquecida pela atitude enérgica do regente.



Tenório Jr. (desaparecido em uma turnê na Argentina no auge da ditadura),
Tião Neto (contrabaixo) e Edison Machado (bateria): auge do Beco
Há uma grande diferença entre um show em um bar ou casa noturna e a música de palco. Isso, claro, sem nenhum demérito para os jazzistas ou músicos de MPB que precisam submeter-se aos couverts artísticos pelo pão de cada dia, o leite das crianças. Em um bar ou restaurante, as pessoas comem, bebem, conversam alto e gargalham. Foi em uma cena dessas que, há muitos anos, o lendário baterista Edison Machado levantou-se de sua banqueta e atirou seu par de baquetas em um casal que insistia em rir alto, perturbando a música. Ele não se conformava em servir de ‘fundo’ para o lazer ruidoso da alta burguesia da boate Flag, de Copacabana. Terminou persona non grata na cena carioca e mudou-se para Nova Iorque, tocando e gravando com mitos como Chet Baker e Ron Carter, não sem antes ter gravado o mais belo solo de bateria da discografia brasileira, preciso mas livre e absolutamente polirrítmico, na faixa “Leila (Venha ser Feliz)”, do LP Minas (1975), de Milton Nascimento.

(Para ouvir “Leila”, na gravação com Edison Machado, clique no link abaixo. Você vai ser convidado a se cadastrar ou simplesmente clicar no botão “Facebook”, para baixar o programa Spotify, um dos mais populares para execução de músicas, LPs e CDs inteiros, milhares de gravações - se for de seu interesse. Caso não , pule o link e prossiga na leitura)


O velho Beco das Garrafas, "lar" da bossa-nova
Após 14 anos nos EUA, Machado retornou ao Rio de Janeiro, onde faleceu precocemente, aos 56 anos. Considerado um dos pais da batida da bossa-nova, consolidada no famoso Beco da Garrafas, em Copacabana, Edison não se conformava em ser ‘fundo’ de qualquer coisa. (Respeito é respeito: assisti a shows como os de Bill Evans e Oscar Peterson, dois dos maiores pianistas da história do jazz, em um bar-auditório em Boston. Durante a música, garçons não atendiam, o público assistia e, se necessário fosse alguém dar um gole ou servir-se, o fazia com entre as músicas). No jazz, é um agrado ter a fineza de aplaudir após cada bom improviso instrumental, mesmo no meio da música. Na Ópera, é de bom tom fazê-lo após uma boa ária. Em uma sinfonia ou concerto para instrumento, apenas após o final da obra, nunca entre movimentos, pois o silêncio faz parte da forma da obra.



Tentando conversar gritando com a música a 100 dB. Linguagem de Libras?
No palco, música é ‘figura’, e não ‘fundo’, pois o silêncio da plateia é imprescindível para uma boa audição. A relação figura-fundo - muito antes de explorações da Gestalt (do alemão: forma), teoria já do século 20 – bem lá atrás, no período barroco (entre os séculos 16 e 18), era um dos elementos de contraste caros à pintura e à música, com ‘poucos tons de cinza’ - parodiando o título de um best-seller, categoria que não leio, por motivos 'de foro íntimo', que é desculpa de quem não quer se explicar). Mas o chiaroscuro e o figura-fundo seriam assuntos para um tratado ou compêndio à parte. Retomando o assunto principal, a música de concerto e a música popular de qualidade exigem silêncio, contribuição para a boa performance e fruição da plateia. Nesses gêneros, elas são 100% figura, e não fundo. (Detesto música de fundo de bares e restaurantes, pois neles o principal é a conversa, ela sim, protagonista. Exceção faço às salas de espera e consultórios, desde que de bom gosto e volume suave, apenas fazendo-se presente, quebrando o silêncio para relaxarmos).

Wilhelm Kempff (Coleção particular de
Constantino Varela Cid)
Há muitos anos, a histórica Sociedade de Cultura Artística de São Paulo publicou uma espécie de decálogo orientando sobre como se portar em concertos. Inspirado em artigo da revista O Cruzeiro, os ‘mandamentos’ estrearam em um programa do grande pianista Wilhelm Kempff em 1951, e recomendavam, entre outras divertidas pérolas (por mim resumidas livremente): (1) “Nunca hostilize o artista. Se não gostou, apenas não bata palmas”. (2) “Se gostar, aclame calorosamente”. (3) “Chegue antes, e se o seu sapato estiver ‘chiando’, perca o concerto e jogue o sapato fora”. (4) “Procure manter-se imóvel, especialmente se a cadeira estiver mal azeitada”. (5) “Não acompanhe a melodia com a cabeça ou cantando: parecerá que só a melodia lhe interessa”. (6) “Não acompanhe o ritmo da música tamborilando os dedos (...) parecerá que só o ritmo lhe interessa”.

Público indisciplinado "modelo"
(7) “Não faça comentários com seus vizinhos”. (8) “...não desembrulhe pacotinhos nem chupe balas ou pirulitos. Jante antes do concerto, pois música sem vitamina é sofrimento”. (9) “Nunca saia correndo após o final do concerto. Parecerá que a apresentação lhe fora um sacrifício”. E conclui com uma saborosa, provocativa anedota: (10) “...quando forem abertas as inscrições para o primeiro curso sobre ‘De como Estar Presente a um Concerto’ (N. do A: curso que nunca existiu), inscreva-se o quanto antes, pois essa história de saber assistir anda muito ‘vasqueira’ (N. do A.: rara) entre nós”.

 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

ANGELICA DE LA RIVA, O CANTO QUE ENCANTOU TATUÍ


SE HOUVESSE UMA RECEITA para se criar uma grande cantora lírica, em primeiro lugar estaria a beleza do timbre de voz, a projeção, a clareza na pronúncia em diversos idiomas e uma versátil extensão vocal, sem exageros que possam comprometer um conjunto musical admirável. Em segundo, a presença no palco, quase-sinônimo de carisma: cada movimento, cada gesto e movimento que, por menores ou suaves que sejam, emolduram, nos mínimos detalhes, o quadro da cena musical. Isso já bastaria para uma grande cantora.

Frontispício da redução
para canto e piano de Othello, de Verdi
NO CASO DESTE ARTIGO, falo de uma soprano spinto, expressão que em italiano se refere a uma voz lírica de contornos dramáticos como quer o papel de Desdêmona da ópera ‘Otelo’, de Verdi, por exemplo. Contudo, a quem vou me referir neste artigo, há ainda um brilho, uma beleza ímpar, um olhar, um corpo esguio e alto em um vestido de corte perfeito e cabelos cuidadosamente arrumados que ora remetem a uma modelo, ora trazem um quê de gueixa.

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
ANGELICA DE LA RIVA tem tudo isso e um pouco mais. Nascida no Brasil de pai cubano e mãe mineira, é uma verdadeira diva - título empregado apenas para as estrelas do canto com grandes predicados (Diva, na mitologia grega, significava deusa ou divindade). De seu pai, cantor de horas vagas, parece ter recebido a inspiração para sua arte. Ela deve sua formação completa à natação, polo, remo, teatro e dança, além de três anos de curso de direito, até se lançar de vez a uma carreira internacional (que já é bastante sólida) nesses últimos 15 anos, altos voos para uma jovem cantora. Completam a personalidade de ‘la Riva’ a pessoa culta e extremamente bem informada em diversas áreas, inclusive na política brasileira, e o de sua adoção há 15 anos, os Estados Unidos, assim como a política internacional, assuntos entre os quais trafega com igual desenvoltura. 


Elen Ramos
NO JANTAR APÓS O RECITAL, Angelica me pediu, com a simplicidade que lhe é peculiar, que comentasse sobre o que considerei o ponto alto e o ponto mais baixo da apresentação, o que prometi fazer neste espaço. Começo, claro, pelo ponto mais alto da performance. Com pouco espaço, prefiro pegar um ‘cavalo de batalha’ das sopranos como exemplo, pois deve-se sempre executar as peças chamadas ‘de confronto’, que dão margem a comparações – o que não farei aqui entre ela em termos relativos com uma ou outra artista, mas de maneira absoluta, sua única pessoa. Trata-se da Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos, em arranjo executado magistralmente por nossa pianista Miriam Braga e os competentíssimos Elen Ramos e Tulio Pires nos violoncelos.
Tulio Pires

 

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
UMA PERFORMANCE EXEMPLAR  de uma peça que está no repertório de 10 entre 10 sopranos é um desafio, pois cada uma deve demonstrar qualidades diferenciais. A voz clara, limpa, audível em todo o auditório sem vislumbre de esforço já é um bom começo. Na obra, Angelica não se dobrou ao rigor rítmico imposto pelos compassos ‘quebrados’ ponteados pelos violoncelos à maneira de violões que marcam a escrita de Villa-Lobos na obra – rigidez do canto que é vício de muitas interpretações corriqueiras.

Página autográfica da 'Cantilena', em 1938,
versão para violão e voz
A CANTORA tomou suas liberdades interpretativas mesmo sobre o texto musical da ‘Cantilena’ – o qual pode induzir alguma cantora mais insegura a uma certa rigidez rítmica. Angelica, ao contrário, demonstrou um domínio ímpar da partitura, conjugado a um entrosamento perfeito com o piano maleável e os ouvidos sensíveis de Miriam Braga. (Após apenas três dias de poucos ensaios, talvez alguém pudesse pensar que o duo se apresenta junto há muito tempo). A cantora imprimiu beleza musical à repetição do tema inicial a boca chiusa – literalmente, boca fechada -, sem usar de artifícios para camuflar a dificuldade da técnica exatamente como pedida pelo compositor, usando exclusivamente a face e a projeção do som nasal com habilidade incomum. Por fim, encurto minha opinião, o lá agudo final do movimento, ainda  boca chiusa,  ainda sob o pleno domínio técnico e musical de Angelica.
Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
OUVIMOS Massenet, Richard Strauss, Carlos Gomes (uma pérola, veja e ouça vídeo abaixo), Gounod, Torroba e Lehar, impecáveis. Agora, peço licença para um breve intervalo no texto para uma surpresa do evento: convidado, sobe ao palco o comendador Colomo do Couto, presidente da SBACE (Sociedade Brasileira de Artes, Ciência e Educação) para a outorga pública da medalha de mérito e certificado Carlos Gomes, que Angelica agradeceu com sua cativante simplicidade. Premiou-se a alta qualidade artística e a divulgação que ela tem feito da música ibero-latino americana pelos quatro cantos do mundo, em salas como os prestigiosos Carnegie e Avery Fisher Hall, de NY, e em sete países diferentes em que atuará nos meses finais do ano, tal fosse uma embaixadora da música brasileira.

Miriam Braga e Angelica de la Riva
Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe
PARA CONCLUIR, cumpre-me citar - infelizmente, mas conforme prometi, aqui vai  - o ponto mais baixo da apresentação. Após receber um arranjo de rosas vermelho colômbia na exata tonalidade de seu elegante vestido, uma vez encerrada a apresentação, e como retribuição pelo trabalho conjunto com Miriam Braga, Angelica oferece à colega pianista uma das flores, preciosamente escolhida. Ao sair do palco, ramalhete consigo, deixou uma plateia de pé e alguns dos presentes visivelmente emocionados. Aguardamos agora o ritornello, a repetição, no jargão musical: Angelica prometeu vários retornos a Tatuí, quando sua agenda a permitir. Os 60 anos do Conservatório de Tatuí foram coroados com uma performance de extraordinária magnitude.

Foto (crédito obrigatório): Kazu Watanabe